RACISMO NA ATUALIDADE

RACISMO NA ATUALIDADE

Live do dia 2 de setembro 2020¹

Autor: Wallace de Moraes

Edição/transcrição: Cello Latini

COMO SE CONSTITUI O RACISMO NA ATUALIDADE? COMO PODEMOS TRABALHAR PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO NA HISTÓRIA DAS FAMÍLIAS?

COLONIALIDADE DO SABER

O que significa a colonialidade do saber? Significa que, quando nossas crianças vão para a escola, elas aprendem que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil. Depois, aprende que Dom Pedro I fez a independência do Brasil. Depois, aprende que a Princesa Isabel aboliu a escravidão. Depois, aprende que os negros eram escravos, inferiores. Também aprende que o negro que fugia do cativeiro era mal, rebelde. O saber que é passado em nossas escolas, também repassado em nossas universidades, reforça o racismo. Não vemos, em nossas escolas, uma questão positiva para o negro, para o indígena – muito pelo contrário, aprendemos que o indígena é o preguiçoso, sua cultura, suas crenças, seus hábitos são ruins. Isso é racismo institucional. Em seu primeiro contato com o saber, a criança é introduzida ao racismo.

Dizem que os indígenas são preguiçosos, indolentes. Mas qual era a vantagem para o indígena em trabalhar para os portugueses? Eles podiam fazer tudo! Pescar, dançar, colher, plantar, amar… E então os portugueses determinam que eles têm que trabalhar para produzir riqueza para o dominador. Os índices de suicídios de indígenas foram enormes, pois preferiam se suicidar a trabalhar para os europeus. É uma questão de ponto de vista. Se nos ensinassem, nas escolas, que o fim da escravidão ocorreu pela ação direta dos próprios escravizados, se entendemos que a ação direta – quando agimos por nossas próprias mãos – nos quilombos, nas fugas, implodiram esse sistema, haveria uma perspectiva positiva para o negro. Os negros lutaram por sua liberdade, pela igualdade, praticaram uma revolução social. Mas não. A princesa Isabel ficou com pena dos negros e assinou sua libertação. É assim que aprendemos. Isso é colonialidade do saber. É a materialização do racismo no ensino.

 

E o que é o racismo? O racismo é um fenômeno criado historicamente. De acordo com a filosofia decolonial, o racismo nasce no momento em que os espanhóis chegaram às Américas, em 1492. A conquista das Américas é o momento fundacional da ideia de criação de raça. Até então, nenhum europeu se autodeclarava branco, nenhum africano se autodeclarava negro. A primeira categoria colonial é a ideia de “índio”. Quando os portugueses chegaram nesse território que se convencionou chamar de Brasil, em 1500, as sociedades indígenas, que aqui habitavam, falavam mais de 1000 línguas diferentes, com mil culturas, histórias, cosmogonias distintas. E então o europeu chegou e disse “você é índio”. Na verdade, Colombo achou que havia chegado nas Índias. A categoria “índio” é, portanto, uma criação europeia e moderna.

Dá-se início, com a chegada dos europeus, à época moderna. Eu não utilizo o termo “descobrimento”, que é um absurdo, uma perspectiva eurocentrada que acabamos reproduzindo. Para o europeu, houve uma descoberta. Mas, em realidade, houve uma conquista pela força, pelo extermínio, pela atrocidade. No Brasil, estima-se que entre 6 e 10 milhões de indígenas foram assassinados nesse processo. Nas Américas, estima-se que esse número chegue a 30 milhões de indígenas exterminados. É o extermínio de toda uma cultura, um saber. Por isso, os autores decoloniais falam em racismo e epistemicídio.

Em 1492, quando os espanhóis chegaram nas Américas, a dúvida dos europeus era se os indígenas eram humanos ou não. Naquele período histórico, sob o domínio da igreja católica, a relação direta era a seguinte: se você tem religião, você é humano; se você não tem religião, você não tem alma, e, portanto, não é humano. O Estado espanhol pediu à igreja para fazer um julgamento, ocorrido em 1552 – 60 anos após a conquista das Américas –, para decidir se os indígenas eram humanos ou não. Foi o julgamento de Valladolid. Uma argumentação era que o indígena não era humano, pois não possuía propriedade privada, já que tudo que ele produzia era dividido igualmente entre os seus. O outro argumento era que o índio tem alma sim, mas precisa ser cristianizado; deveria acreditar na mesma cultura e no mesmo Deus que o europeu. Ambas as perspectivas são racistas. Nesse julgamento, decidiu-se que os indígenas eram humanos e deveriam ser cristianizados. Esse indígena não podia mais ser escravizado. Com isso, os espanhóis e portugueses decidiram escravizaros povos africanos. Os indígenas foram submetidos à encomienda, ou seja, eles trabalhavam para o senhor branco, desde que este conseguisse cristianizá-los. De todo modo, esse índio é um subumano, pois não tem os mesmos direitos que o branco europeu.

Então, esse império foi para a África e sequestrou diversos povos africanos e os transportou para as Américas para produzir riquezas. Não havia dúvidas se o Negro era humano ou não, era tratado como um animal, como um cavalo, um burro de carga. Essa perspectiva reforçou a ideia de raça, que até então não existia, e a sua consequência natural, que é o racismo. Como explicar que negros, hoje, ocupem as piores moradias, os subempregos, e sejam parados nas blitz policiais, ocupem os cemitérios mais cedo do que brancos? Existe um racismo explícito. Obviamente, os negros são os que mais sofrem com isso. Por outro lado, ainda é muito comum ver professores brancos afirmando que não existe racismo no Brasil. Para mim, isso soa como uma aberração.

Todo racismo é institucional. Quando você vai para uma universidade pública e não vê professores negros, está aí o significado muito claro de que há racismo na sociedade. Quando você vai para um parlamento, quando olha para os empresários das grandes empresas, só vê brancos, em sua maioria homens, e em segundo lugar mulheres… Não encontra homens negros, e muito menos mulheres negras. Em todos os espaços institucionais de nossa sociedade, vemos um número minoritário de negros, embora a maioria da população brasileira seja negra.

Nosso país tem que ampliar nossos horizontes de modo a incluir essa população negra, a distribuir renda, a criar empregos decentes, com salários, construir, na medida do possível, a perspectiva do autogoverno, estabelecendo questões mais horizontais e menos hierárquicas. O modelo em que vivemos é muito fértil para todo tipo de racismo, que são sociedades hierarquizadas, autoritárias, amplamente desiguais. O cobertor é curto: o trabalhador branco tem pouco espaço e o negro tem menos espaço ainda. Então, o negro briga com esse branco trabalhador por pouco espaço. Temos que mudar todo esse processo. Nosso país é um paraíso para banqueiros, empresários e investidores internacionais.

Como podemos evitar que as famílias sejam educadas de uma maneira antirracista? Hoje, é muito comum dizerem que não há racismo, mas há um racismo velado, que desqualifica negros e indígenas. Quando chegaremos num ponto em que a cor da pele não significará nada?

 

RACISMO ESTRUTURAL E RACISMO INSTITUCIONAL SÃO A MESMA COISA?

Não existe racismo sem instituições. Vamos supor que eu fosse rosa e dissesse que não gosto de quem tem a cor vermelha. Na minha cabeça, eu posso discriminar pessoas que tem a cor vermelha. Mas, se não existem instituições que imponham esse tipo de discriminação pessoas essas pessoas – em nosso exemplo, de cor vermelha –, então não há racismo. O racismo é impostopor instituições. A primeira que constituiu o racismo, que começou a conquista das Américas, foi o Estado europeu. Não havia um empreendimento particular que fizesse a escravidão; o empreendimento é estatal. O Estado cria a polícia, o exército com características racistas. A primeira coisa que se fazia ao chegar em uma cidade era criar uma prisão, a polícia, um governo, e uma igreja. A igreja dava benção para os militares fazerem o papel de prender indígenas e negros. O papel histórico destinado para negros e indígenas possui dois caminhos: ou se subordinam, se aculturam, abandonam sua história, e passam a venerar a cultura do dominador – ser cristão, amar o Estado, respeitar o governo, a polícia e o padre, ter medo da prisão e trabalhar incansavelmente para seu senhor; se o negro e o indígena desrespeitarem isso, eles são destinados à prisão ou ao cemitério. Em resumo, os dois caminhos são: 1) aculturamento e produção de riqueza ou 2) prisão e cemitério.

 

COLONIALIDADE

O colonialismo significou a escravização dos negros e a transformação das Américas em colônias dos países europeus. A princípio, o colonialismo teve um fim no século XIX, com a independência dos países latino-americanos. A colonialidade significa que os princípios colonialistas que escravizaram negros e indígenas permanecem até os dias atuais. É um poder que se instaura subordinando pelos caminhos do aculturamento, da prisão ou do cemitério. Ser decolonial significa lutar contra essa colonialidade existente até os dias atuais.

Uma luta pela liberdade, para negros, indígenas e seus descendentes, deve ser uma luta anti-estatal. O princípio do Estadofoi criado por Hobbes, por exemplo. Em “Leviatã”, de 1651, a liberdade era tida como um mal. “O homem é o lobo do homem”. Sem Estado, há “guerra de todos contra todos”. “O soberano (Estado) é que vai garantir os nossos interesses.”Mas Hobbes não disse que o Estado só vai garantir os interesses de quem governa. O Estado não foi criado para garantir os interesses de negros e indígenas, que estão sendo exterminadoshá mais de 500 anos nesse país. Até hoje,negros estão sendo exterminados nas favelas e periferias, enquanto indígenassão exterminados nas florestas, com anuência do Estado.

 

COLONIALISMO E O PATRIARCADO BRANCO

Quando ocorreu o genocídio contra mulheres negras na África, também ocorreu contra mulheres brancas na Europa. Na Inquisição, as mulheres europeias foram acusadas de bruxaria, e não foram milhares, mas sim milhões. Essas mulheres foram queimadas vivas, porque eram elas as responsáveis pela herança cultural de suas sociedades. Eram elas que protegiam as comunas antes do processo de cercamento dos campos. Na Europa, existiam comunas livres, sem Estado, sem governo, sem propriedade privada das terras. As pessoas que lá vivam colhiam, plantavam e distribuíam a sua produção entre si. As mulheres eram responsáveis pela espiritualidade, por passar conhecimentos astrológicos etc. O patriarcado branco exterminou essas mulheres, estabelecendo um poder hierárquico, autoritário, patriarcal, através da associação entre Estado e igreja.

Ao contrário das violências realizadas pela igreja ao longo da História, Jesus Cristo deixou dois legados: o amor ao próximo e o repartir do pão. A maior parte dos que se dizem cristãos abandonaram isso por completo. O mais importante é termos sempre o amor como nosso guia, o amor ao próximo, o compartilhamento de um sentimento. Esse amor tem que estar casado com a mais ampla defesa da liberdade, seja na família, no coletivo, no indivíduo. A liberdade para os anarquistas somente pode se concretizar com igualdade.

 [1]  Transcrição por Cello Latini de live realizada no Instagram @atfrj, pelo professor Wallace de Moraes. Disponível em: https://www.instagram.com/tv/CEp0yQ5F4cE/

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