EPISTEMICÍDIOS FUNDADORES DA MODERNIDADE

Aula dia 08 de setembro 2020

Autor: Wallace de Moraes

Edição/transcrição: Cello Latini

Grosfoguel trata, de maneira correlata, quatro genocídios/epistemicídios simultâneos que fundaram a modernidade. O primeiro ocorreu contra judeus e muçulmanos na península de Al-Andalus, no território que hoje conhecemos como o sul da Espanha. Esse genocídio/epistemicídio atentou contra as ideias, a cultura, a história desses povos. Esse é um dos primeiros passos do recente formado Estado moderno espanhol.

Outro genocídio/epistemicídio foi realizado nas Américas, num primeiro momento contra os povos que aqui habitavam. Estima-se que cerca de 20 milhões de indígenas foram assassinados. Não só seus corpos, como também toda a sua cultura. Suas bibliotecas foram destruídas. As bibliotecas dos muçulmanos, em Al-Andalus,contendo em torno de 500 mil livros,também foram destruídas pelo Estado espanhol. Nas Américas, as bibliotecas dos Incas, dos Maias, dos Astecas também foram destruídas. Seus avanços tecnológicos e científicos foram destruídos e/ou roubados, apropriados, em um primeiro momento pelo Estado espanhol e, posteriormente, pelos Estados português, inglês… por todos os Estados europeus modernos que praticaram o colonialismo nas Américas.

O terceiro genocídio ocorreu contra africanos, por meio de seu sequestro no seu continente. Eles foram trazidos para as Américas para a produção de riqueza para os governantes econômicos e políticos europeus. Com efeito, suas culturas e corpos passaram pelo genocídio/epistemicídio patrocinados pelos Estados modernos europeus.

O quarto genocídio/epistemicídio ocorreu contra mulheres na Europa acusadas de bruxaria, entre os séculos XVI e XVII. Essas mulheres europeias foram exterminadas aos milhões porque tinham a responsabilidade de organizar a cultura de suas comunas. 

Diante do relato desses quatro genocídios/epistemicídios devemos realizar as seguintes perguntas: 1) Qual foi seu significado? Em nome de que foi realizado? Com quais objetivos? Em seu conjunto, esses quatro genocídios/epistemicídios resultaram em quê?

CRIAÇÃO DA IDEIA DE RAÇA

A categoria “índio” foi a primeira identidade moderna. Tendo a defender a ideia de que há um problema sério de alteridade. O Estado espanhol não reconhece o outro como humano, como passível de respeito.

O racismo é sempre institucional, pois é realizado por instituições. A conquista das Américas foi concretizada por instituições. Obviamente, o racismo que predomina hoje está relacionado à cor da pele, mas o racismo já teve cunho religioso, inclusive vigora até os dias atuais. 

É um absurdo quando se defende a existência de racismo reverso. Imaginemos que um branco sofreu “racismo” de um negro – mas se isso não resulta, para o branco, em não conseguir emprego, não conseguir estudar nas melhores escolas, não conseguir ascensão social, então não existe racismo. Agora, se um negro não consegue ocupar os postos de poder mais altos da sociedade, por conta de sua cor da pele, então temos um racismo institucional.

As formas de poder institucional podem ser divididas em cinco governanças: políticas, jurídicas, econômicas, socioculturais, penal. Isso nos ajuda a pensar a exclusão dos negros, que, não à toa ocupam as piores escolas, as piores moradias, os piores empregos. Isso é racismo institucional.

O que devemos saber é que existe um papel para o negro cumprir nessa sociedade. Aquele que se subordina, que pede bênção todos os dias, que lambe os sapatos da elite, é adorado por todos os governantes. A elite adora ter um “pretinho” para chamar de seu. 

Mas se você fala com a elite no mesmo patamar, de um ponto de vista de alguém que é ser-humano também,aí você é visto como a pior coisa do mundo. Se você sabe desconstruir todos os pilares que justificam a superioridade deles, é pior ainda. Se você é anarquista, então, é o fim do mundo, porque você toca forte na ferida, ao criticar o Estado, justamente a instituição que garante a manutenção do status quo, do privilégio branco, do racismo e da desigualdade. 

Por que todos os negros, indígenas e seus descendentes não foram exterminados? Porque existe um papel para se cumprir e esse papel é o de produzir riqueza para a elite branca. Quem não cumprir, enfrenta dois caminhos: a prisão ou o cemitério.

O “EU CONQUISTO” E A NEUTRALIDADE AXIOLÓGICA

Temos alguns caminhos para entender as Ciências Sociais. Prefiro vê-la sempre dentro de seu contexto histórico. Fora disso, a discussão se torna superficial, efêmera, o sexo dos anjos. O texto de Grosfoguel é interessante por causa disso, de sua contextualização histórica.

É importante compreendermos que a construção da modernidade traz os resquícios da Idade Média. Naquele momento histórico, o saber estava nas mãos de quem? Durante um longo tempo, o conhecimento europeu esteve nas mãos da Igreja. Era ela que detinha o controle sobre as bibliotecas europeias. Por isso, Aristóteles – que era um aristocrata por natureza – não podia ser lido. Quando Descartes escreve“penso, logo existo”, ele dá o primeiro passo para fundar uma perspectiva epistemológica em que ocorre uma passagem de Deus, da Igreja, da religião como centro do saber para o homem enquanto centro da produção de saber. Esse homem não é um qualquer, e sim o branco, proprietário, da Europa ocidental. Nesse contexto, estão excluídas as mulheres, todos os homens negros, indígenas, asiáticos, o campesinato europeu, os sans-culottes… Em resumo, esse domínio do saber se concentrou nas mãos de uma aristocracia branca, proprietária e rica, tomadora de terras. Houve teóricos, tipicamente racistas, que fundamentaram essa predominância, como Locke, Hobbes, Kant, Montesquieu, e o próprio Descartes. 

Apresentava-se, assim, a visão imperial do homem europeu. O “eu” se coloca no patamar do olho de Deus, capaz de produzir um conhecimento imparcial. Assim nasce a neutralidade axiológica, a noção de imparcialidade, que funda nossas universidades. Grosfoguel identifica, então, dois aspectos fundamentais: o dualismo ontológico de separação entre o corpo e a mente e o solipsismo. O que significa essa separação? Obviamente, sabemos que todo e qualquer saber é produzido a partir de um lugar. O corpo estava na Holanda, na França, na Inglaterra, na Espanha, mas a mente, separada do corpo, poderia circular universalmente, tal como os olhos de Deus, e olhar o mundo do alto, podendo escrever sobre qualquer ocorrência na história da humanidade. Assim, esse homem, branco, intelectual, proprietário, se arroga um poder universal e superior com relação aos demais seres do universo.

O segundo aspecto é o solipsismo, isto é, um monólogo interno do sujeito, que não necessita da interação social para construir seu saber. Aí, já está o princípio do individualismo, que retira o sujeito da interação social, de seu lugar social, para estabelecer uma ideia de construção em que o indivíduo se faz perguntas e chega a conclusões universais, neutras, sábias sobre tudo e todos. Esses aspectos fundam o que Grosfoguel chama de filosofia cartesiana, que gera toda a ideia de objetividade das Ciências sociais ocidentalizadas.

É contra isso que a perspectiva decolonial luta. Contra os princípios desse modo de interpretar o mundo, que é estabelecido em nossas universidades. Todo saber é produzido a partir de um lugar, de uma história.Por isso, eu faço questão de me localizar socialmente, meu lugar de fala, minha origem, a cor de minha pele, o que tenho em comum para construir um conhecimento, qual a minha experiência de vida. Não posso querer falar do mundo inteiro, mas sim de meu lugar de fala, de minha experiência de vida, que vão me ajudar a construir uma forma de interpretar o mundo. Quero dizer assim que todo saber é construído a partir de um lugar, das relações sociais que o indivíduo constrói. A própria escolha do objeto de estudo, do método, do quadro teórico, da hipótese é subjetiva. Isso não significa dizer que vamos mentir. Longe disso.Mas a totalidade de uma objetividade neutra e universal não é possível, para ninguém. Toda interpretação, sempre será a partir de um lugar, de uma cultura, de experiências de vida.

OS DIFERENTES TIPOS DE COLONIALIDADE

Aníbal Quijano falou da colonialidade do poder. Além desta, há a do ser, do saber, de gênero e da natureza. É necessário descolonizar todos esses aspectos. É imprescindível que façamos isso. O próprio conceito de natureza é moderno e eurocentrado,porque a natureza, para esse pensamento moderno,capitalista, patriarcal e racista, é um meio para se atingir fins. Por isso, se destroem rios, florestas, animais, sem constrangimento. Para a literatura indígena de Ailton Krenak, Munduruku, Kopenawa, a perspectiva é oposta. A natureza é pachamama, é a Mãe Terra. A montanha, os rios fazem parte da família indígena. Isso o pensamento europeu não consegue compreender, porque só pensa em destruição, em dinheiro. As cosmogonias indígenas não adentram nossa universidade.

Temos que tornar essa literatura acessível, essa cosmogonia que diz respeito a nós. Ao somente valorizarmos a cultura da elite europeia, nossos alunos têm orgulhos de se dizerem descentes de europeus. Ao mesmo tempo, humilhamos, deterioramos a autoestima de negros, indígenas e seus descendentes. É muito cruel fazer isso com as crianças em sala de aula. Será que não pararam para pensar nos efeitos para as crianças, que não são descendentes de europeus,do ensino pautado nos valores europeus como positivos e nos valores indígenas e africanos como negativos? Quando um professor tem a consciência de valorizar a cultura do negro e do indígena, a criança fica feliz em se reconhecer como descendentes de indígenas e negros. Mas são poucos os professores que possuem essa consciência. Ademais, são poucos os professores negros e indígenas nas escolas. Essa confirmação do racismo institucional já gera um efeito negativo para as crianças não brancas.

Eu também já dei aula para o ensino fundamental, e fazia questão de me afirmar como negro, de valorizar a cultura negra. Sempre quando eu dava aula de escravidão, os negros na sala de aula ficavam envergonhados, se retraíam. Era constrangedor. O próprio currículo que nos é passado reforça isso. É isso que nossa academia não sabe, que o professorado branco não sabe, nunca sentiu na pele. Eu precisava criar subterfúgios para inverter o processo de justificativa, legitimação, valorização da escravização, para que os negros não ficassem com sua autoestima absolutamente rebaixada. Para tanto, é necessário subverter por completo o currículo escolar/universitário e valorizar as rebeliões contra o colonialismo, contra a exploração, contra as desigualdades, contra o capitalismo. É necessário valorizar a luta pela liberdade dos povos indígenas e negros.É um processo de luta contínua.

O extermínio de nossos antepassados também apagou nossa história, nossa cultura. Durante o processo de escravização, os mais velhos não interessavam aos europeus, pois não tinham força para trabalhar, então eram assassinados, jogados ao mar. Separavam-se os jovens de seus ancestrais. Essa passagem da cultura dos ancestrais para os mais jovens foi interrompida. Houve uma perda de referência desse conhecimento, e os jovens passaram a ser conduzidos, “adestrados”, pelos conquistadores. O Estado e a Igreja estão atrelados no mesmo processo de colonização, subordinação, aculturamento, colonialidade e extermínio de negros e indígenas. O processo de cristianização de negros e indígenas foi cruel demais.

Quando vemos negros que, por perda das referências ancestrais, defendem as instituições modernas tais como, o Estado e o dinheiro, percebemos que eles não sabem encaminhar uma luta contra esse processo e ainda estão sob a colonialidade do saber. O branco adora o negro que se diz antirracista e que defende o capitalismo, construído com base na exploração de negros. Nós fomos educados a amar e idolatrar o Estado. Em algumas escolas, cantam o hino nacional de manhã. Somos ensinados a amara bandeira, seja nos quartéis, nas Igrejas, nas escolas. É o mesmo padrão: respeite as autoridades, e sabemos qual cor elas têm.

Referências

GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril 2016. 

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina.Váriasediçõesdisponível na web.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *