ANARQUISMO NEGRO

Aulas 15 e 20 de outubro 2020

Autor: Wallace de Moraes

Edição/transcrição: Cello Latini

Hoje o tema da aula será o significado do anarquismo negro, que tem uma força razoável no movimento negro dos Estados Unidos e, em alguma medida, no Brasil chegaram alguns textos sobre isso e temos alguns coletivos, mas não muito difundidos. Tratarei hoje de dois autores: Lorenzo Kom’boa Ervin, autor do livro Anarquismo e Revolução Negra (1979), e Ashanti Alston. Ambos foram do Partido dos Panteras Negras.

Apresentarei as biografias dos autores e situarei, no contexto das ciências sociais, o conceito de anarquismo negro. É fundamental compreendermos o anarquismo negro no interior das lutas antirracistas dos EUA e apresentar as teses de Ashanti Alston e Kom’boa.

CONTEXTUALIZAÇÃO DO ANARQUISMO NEGRO

O primeiro aspecto que temos que discutir aqui é sobre a subalternização do pensamento negro pelo ocidentalismo e pelo colonialismo. De modo geral, eu sempre sugiro que discutamos determinado conceito, autor ou escola teórica situando-os no tempo. Se estou falando do pensamento negro dentro das ciências sociais ocidentalizadas, sabemos que o negro, para o pensamento ocidentalizado, é um ser inferior. Negro não era humano, era tido como animal, e podia ser escravizado. É como se o negro não tivesse nada a produzir do ponto de vista filosófico. Os conceitos de epistemicídio, historicídio, colonialidade do saber expressam a subalternização, discriminação e exclusão toda forma de pensamento realizado por negros, como se o negro não fosse capaz de produzir filosofia, história, teoria, epistemologia. Por isso, justifica-se que todos os clássicos sejam homens brancos europeus ou estadunidenses, que ocupam a bibliografia das disciplinas em universidades brasileiras, latino-americanas e no mundo ocidental como um todo.

O pensamento negro é excluído, como se não tivesse nenhum tipo de valor. Após o fim da escravização de corpos negros, em fins do século XIX e, em alguns países, no século XX, após a libertação de nações africanas, perspectivas, dentro do ocidentalismo, começaram a mudar em relação à produção teórica. O negro sempre produziu, mas sua produção sofreu de epistemicídio e historicídio, ou seja, foi retirada do patamar. Negros, hoje, estão nos piores empregos, nas prisões, nas piores moradias, estão ocupando os cemitérios mais cedo que os brancos.

Há diversas perspectivas possíveis para o movimento negro, desde o movimento negro liberal, defensor de dinheiro, capitalismo, hierarquias, desigualdade e nacionalista, até o movimento negro marxista, que faz uma crítica capitalista, mas mantém uma estrutura autoritária de organização social, e o movimento negro social-democrata, que tem como perspectiva a criação de direitos, mas não amplia uma crítica ao sistema capitalista, ao Estado – pelo contrário, procura obter direitos por meio do Estado. E há o movimento negro anarquista, ou com tendência anarquista, que faz uma crítica não só ao capitalismo, como também ao Estado, às desigualdades e a toda forma de estrutura social hierarquizada e autoritária. São essas, a priori, quatro grandes tendência que vemos. Nessas quatro grandes matrizes, há outras que podem ser entendidas como vertentes ou sub-matrizes. A matriz de Kom’Boa e Ashanti Alston é a do anarquismo negro. Antes de nos aprofundarmos no anarquismo negro, investigaremos as outras vertentes.

Se a solução for que os negros impulsionem o capitalismo, que circulem o dinheiro entre si, a perspectiva é liberal, porque está dentro do modelo capitalista, do dinheiro, do valor. Obviamente, os liberais querem isso. Para o liberal, a melhor coisa do mundo é que o negro se incorpore em sua economia; que o negro impulsione o capitalismo que foi criado pelos brancos europeus. Aliás, não existiria capitalismo se não fosse pelo colonialismo, pela escravização dos nossos antepassados, escravização, morte, assassínio, tortura, pau-de-arara, não existiria capitalismo na Europa. Marx não levou em conta a escravização de negros e indígenas nas Américas e na África para a produção do capitalismo, ele errou. Não foi só o cercamento dos campos e a exploração do campesinato europeu e transformação desse campesinato europeu em força de trabalho. Isso, aliás, foi pouco diante da extração de riquezas do trabalho de negros e indígenas na África e nas Américas. O sistema capitalista é e sempre foi racista e se impôs sobre a escravização de nossos antepassados. Além do capitalismo, outra estrutura central para a escravização e subalternização de negros em todas as partes do mundo é o Estado, como dizia Fanon; o Estado com militarismo é aquele que efetivamente prendia, açoitava. Os militares, a mando dos Estados europeus, faziam isso. E esses Estados europeus, ocupados pelos governantes políticos, em conluio com os governantes econômicos da Europa, se aproveitaram do trabalho escravizado de negros e indígenas no Brasil, nas Américas e na África. Os postulados da teoria liberal são capitalismo, individualismo, partindo do princípio de que a propriedade privada é alçada ao status de direito natural, entendendo a desigualdade econômica como valor positivo e defendendo o Estado mínimo. Negros e indígenas são mantidos subalternizados e escravizados.

Temos aqui quatro componentes: capitalismo, Estado, militarismo, e quem justificou todo esse processo foram as igrejas. Capitalismo, Estado, militarismo e igrejas, em seu conjunto, justificaram, implementaram e garantiram a escravização de negros e indígenas, o que resultou em um modelo econômico, que pode ser chamado de liberalismo, baseado fundamentalmente na exploração do trabalho alheio e na circulação de dinheiro. Desse trabalho alheio, os mais explorados continuam sendo negros, indígenas e seus descendentes pela América e pela África. As soluções que nós temos, enquanto negros, para os nossos povos, a meu ver, não podem incorporar ou não criticar o modelo capitalista liberal. Inclusive, isso, para mim, é um descompromisso com os nossos antepassados que foram escravizados por esse sistema, ou por esse conluio de coisas que foram postas aqui. Uma saída liberal para a libertação do povo negro é um grande equívoco, do ponto de vista histórico; é uma negação da história pregressa de escravização, subalternização, matança, extermínio e aprisionamento dos nossos povos.

A perspectiva social-democrata busca, por dentro do capitalismo e do Estado, garantir direitos. Podemos chamar de uma perspectiva social-democrata o que foi realizado nos Estados Unidos pelos movimentos de direitos civis. O movimento de direitos civis capitaneado por Martin Luther King foi uma inclusão dentro do Estado estadunidense, um reconhecimento desse Estado da humanidade desses corpos negros, o reconhecimento de certa “cidadania” desses corpos negros, e uma inclusão, sem tocar na questão da exploração total e completa de classe social. A social-democracia possui algo em comum com o liberalismo, como o capitalismo, mas também há diferenças, como o coletivismo subordinado ao Estado, a função social da propriedade, a minimização da desigualdade e o Estado interventor – Estado de Bem-Estar Social, ou welfare state, ou Estado de Providência, segundo Boaventura de Souza Santos. Eu chamo de Estado Camaleão, ou capitalismo de Estado, como Chomsky. Há diversas denominações. Dependendo do lugar em que estiver, você dará um nome que pode ser positivo ou negativo. Quando o liberal chama esse Estado de interventor, já passa uma ideia negativa. E quando os social-democratas o chamam de Estado de Bem-Estar Social – bem-estar social para quem? Os negros e indígenas nunca vivenciaram isso, nem no Brasil nem nas Américas. Nosso papel é romper com essa perspectiva ocidentalizada.

Todo movimento que requer uma inclusão institucional dos negros dentro do modelo de Estado e capitalista já existente pode ser denominado social-democrata. A social-democracia é uma filha legítima do marxismo, e produz uma preocupação em garantir direitos para os trabalhadores, mas, diferente do socialismo marxiano, ela não tem uma perspectiva revolucionária, de tomada do poder por meio de revolução, mas sim de tomar o Estado por meio de eleições. É totalmente institucionalizada.

Uma terceira saída seria o ponto de vista marxista, que possui diversas vertentes: marxismo-leninismo, marxismo-stalinismo, por aí vai. Muitos africanos se apegaram a essas vertentes e impulsionaram lutas de emancipação dos países africanos. Essas lutas na África que levaram à independência de países africanos não necessariamente levaram a uma emancipação dos governados, mas sim a uma troca de governos brancos por governos negros. A tomada do poder por negros não resultou na libertação dos governados africanos. Tal como, sob a perspectiva marxista, nem nos outros países, em nome do marxismo, se garantiu a emancipação dos governados, porque sua liberdade foi limitada em função desses governos. O grande diferencial do marxismo é a perspectiva do Socialismo de Estado, segundo o qual o Estado é fundamental. Os Estados marxistas, assim como os liberais, sempre foram autoritários, principalmente para com os rebeldes e insubmissos. Qualquer Estado ao longo da história sempre foi muito autoritário para seus opositores. O Estado, sob o liberalismo sempre garante os interesses dos capitalistas – por isso, chamo de plutocracia. E os Estado marxista garante os interesses para os filiados do partido comunista. Aliás, até escrevi um artigo “Necrofilia Colonialista Outrocida”, em que falei dos amigos-bandidos e dos amigos-inimigos.

Os marxistas defendem o Estado dominado pelos trabalhadores, a centralização do poder e a subordinação de tudo ao Estado. É um modelo de Estado que mantém a dicotomia governantes/governados. Em nenhum momento, todos trabalhadores podem ocupar o Estado. É sempre uma elite, uma vanguarda. Em comum, as perspectivas marxista e anarquista possuem, em comum, o fim da propriedade privada, o fim da desigualdade social, o internacionalismo. Os anarquistas defendem as comunas livres, a auto-gestão, descentralização e federalismo, criação de associações voluntárias entre os indivíduos.

Como o negro pode buscar sua emancipação a partir, ou se valendo de ações desse pensamento anarquista? Existe um modelo de anarquismo branco, que também deve ser criticado. A perspectiva anarquista acredita e defende a ideia de autogoverno. Quando se diz autogoverno, está muito nítido que todas as pessoas podem se autogovernar, e todos aqueles que não acreditam no autogoverno partem do princípio aristocrático de que os outros não podem se autogovernar, porque não são capazes. Isso é histórico, vem de Platão, Aristóteles, está presente em todo o pensamento ocidentalizado. Por isso, Ashanti Alston e Kom’boa pensam que essa perspectiva anarquista dá instrumentos para a emancipação do povo negro a partir da ideia do autogoverno, da emancipação dos povos, de sua autodeterminação, entendendo que os negros descendentes de africanos que estão nos Estados Unidos constituem povos dentro dos Estados Unidos. Povos autônimos, que neste momento estão subalternizados.

Como podemos pensar numa libertação dos povos negros a partir de uma perspectiva decolonial? A perspectiva decolonial parte do princípio de que os negros e indígenas, os povos subalternizados pela colonialidade do poder desde 1492, devem ser aqueles a construir sua própria libertação. Deve ser uma ação dos próprios negros e indígenas, uma valorização de sua própria cultura, de suas religiões, de suas práticas e filosofias, pondo abaixo os princípios da colonialidade – que são, segundo uma perspectiva decolonial libertária, capitalismo, Estado, militarismo, igrejismo, patriarcado, heteronormatividade, cisnormatividade, atentados contra a LGBTIAfobia. No pensamento decolonial, ainda há muitos que possuem forte crença no papel do Estado, e a grande diferença da proposta decolonial libertária é não ter nenhuma crença no papel do Estado. Foi o Estado que nos escravizou, matou, nos mantém subordinados até hoje e nos mata até hoje. Essa instituição não tem solução para negros e indígenas. Por isso, uma perspectiva decolonial libertária é um passo além da perspectiva decolonial e do anarquismo puro. O erro do anarquismo, do ponto de vista histórico, era não entender que o racismo corta todas as relações sociais, desde 1492. Por isso, defendo que a perspectiva decolonial ensina isso ao anarquismo, mas, ao mesmo tempo, o anarquismo ensina à perspectiva decolonial que não há crença no Estado, porque o Estado é uma instituição de coerção, cuja primeira função é o militarismo, que não tem outra intenção senão matar o outro. O militar é treinado para matar.  Os alvos principais do militarismo são negros e indígenas há 500 anos.

BIOGRAFIA DOS AUTORES

Kom’boa nasceu no Tennessee, em 1947, foi membro de uma gangue de rua na juventude. Depois, foi para a Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP) aos 12 anos de idade. Foi soldado no exército, quando organizou movimentos contra a guerra do Vietnã, sendo, então, expulso do exército. Participou do Comitê Não-Violento de Coordenação Estudantil, em 1967, antes de se juntar ao Partido dos Panteras Negras. Apoiou as lutas que surgiram contra o assassinato de Luther King, em que foi acusado de porte ilegal de armas. Para escapar desse processo, ele seqüestrou um avião e viajou para Cuba, em fevereiro de 1969. Durante sua estadia em Cuba, foi para a república da Checoslováquia, onde se iludiu com o socialismo de Estado, ao perceber que era um modelo de ditadura.

Em Praga, ele foi entregue a oficiais dos Estados Unidos, por colaboradores da CIA. Capturado e mantido no consulado americano, Kom’Boa fugiu para Berlin Oriental, sendo, novamente, capturado, drogado e torturado durante o interrogatório no consulado norte-americano. Foi trazido para os Estados Unidos e disseram que ele havia se entregado, outra mentira. Na face do julgamento em uma pequena cidade da Georgia, onde enfrentou a pena de morte perante um júri totalmente branco, Kom’Boa foi condenado a permanecer o resto de sua vida na prisão. Ervin permaneceu na prisão politicamente: fundou uma associação dos presos e foi na prisão que Kom’Boa conheceu o anarquismo. Não só Kom’Boa, como Ashanti Alston e outros teóricos do movimento negro conheceram o anarquismo negro na prisão. Logo, podemos dizer que o anarquismo negro nasce na prisão. Por isso, o anarquismo é historicamente casado com o abolicionismo penal. Na Europa, Bakunin, Kropotkin e outros teóricos anarquistas estiveram presos durante décadas.

O anarquismo é historicamente abolicionista penal, e curiosamente o anarquismo negro nasce dentro das prisões. Isso interessa demais aos pretos e negros pesos no Brasil e na América Latina em geral, porque essa instituição foi feita para nos aprisionar. Para quem está preso, o valor principal é a liberdade, e deveria ser para quem não está preso também, pois estamos todos presos a um sistema. Talvez por isso a ideia de liberdade seja fundamental para o anarquismo e imprescindível para a humanidade. Não há nada pior para qualquer ser humano e animal do que estar preso. Talvez eu tenha sido sempre anarquista, desde criança, pois quando eu via um passarinho preso na gaiola aquilo me indignava. Prender, seja um passarinho, um animal, um homem, uma mulher, um ser, um corpo, é criminoso. Não há nada pior do que isso. Daí, a liberdade é fundamental para o anarquismo.

Kom’Boa organizou o movimento de prisioneiros negros, na prisão, no sindicato da prisão, no início da década de 1970, ficou confinado na solitária e sofreu censura do correio da prisão. Por que todos esses negros conheceram o anarquismo na prisão? Há, até hoje, um movimento anarquista nos Estados Unidos chamado Cruz Negra, que é um movimento de apoio jurídico, de alimentação, e que leva livros anarquistas aos presos. Foi assim que tiveram acesso à literatura anarquista. Kom’Boa organizou um grupo de prisioneiros, “Irmãos Marion”, que lutaram contra a primeira Unidade de Controle da Penitenciaria Federal de Marion. Após 15 anos de encarceramento, uma campanha internacional conseguiu retirá-lo da prisão. Kom’Boa sai da prisão e começa a atuar em movimentos sociais negros nos Estados Unidos, contra a KKK, organizou manifestações de massa, como em 1987, que resultou na Klan sendo expulsa da cidade. Ervin também foi o principal responsável pelo ajuizamento de uma ação coletiva por várias organizações Negras e a ACLU, que resultou na reestruturação do governo da cidade, bem como a eleição de vários Comissários Municipais Negros. Além disso, ajuizou uma ação importante de direitos civis, forçando a cidade de Chattanooga a mudar sua estrutura de governança para respeitar a comunidade negra. Por fim, escreveu o livro “Anarquismo e Revolução Negra”.

A biografia de Kom’Boa é a mais pura luta, uma vida inteira de luta. Você pode até discordar da tese do autor, mas não pode desqualificar que ele não está construindo seu pensamento no luxo de um apartamento, sentado em um sofá em casa; ele está construindo seu pensamento de dentro da prisão, do movimento social negro, combatendo a Ku Klux Klan, o autoritarismo contra negros. Ele não reflete por seu próprio prazer e benefício, mas sim pela revolução libertária anarquista. Para isso, em seu texto, Kom’Boa procura  discutir a natureza do anarquismo e sua relevância para a libertação do movimento negro. Seu método é juntar as perspectivas de raça e classe. Diferentemente do anarquismo puro, que somente aborda classe, Kom’Boa também integra raça. Ele escreve isso em 1979, ainda fora do movimento decolonial. Além de raça e classe, sua tese central é que de os negros são duplamente oprimidos: tanto pela supremacia branca como pelo capitalismo. Assim, a exploração capitalista é inerentemente racista.

Dentro do livro “Anarquismo Negro e Revolução Negra”, de Lorenzo Kom’boa, temos o posfácio de Ashanti Alston. De início, Ashanti teve uma aversão ao anarquismo. Todos nós tivemos essa aversão, a priori. Quem não conhece o anarquismo, a princípio, se coloca de modo contrário, pois vivemos em uma sociedade em que o anarquismo é criminalizado profundamente, tal como os brancos – e muitos negros também – possuem uma grande aversão aos negros, tal como aprendemos que indígenas são indolentes e preguiçosos e não possuem um caráter bom, profissional, trabalhador, como os brancos. Nascemos, na sociedade heterossexual e cisnormativa, e aprendemos a ter preconceito contra os homossexuais, transexuais e toda a comunidade LGBTIA+. Seria anormal se nascêssemos e fôssemos estimulados a ter simpatia pelo anarquismo, tal como se fossemos estimulados a ter simpatia para com os negros. Inclusive, somos estimulados a ter antipatia, inclusive muitos negros também são estimulados a terem antipatia pelos próprios negros, e chegam até a não se reconhecerem enquanto negros. A aversão de Ashanti pelo anarquismo é natural.

Quando esteve na prisão, Ashanti recebeu vários textos de militantes que procuravam cuidar dos presos, mas sempre se recusou a ler. A Cruz Negra, uma organização anarquista que vão às prisões dar apoio, acessória jurídica, se colocar como familiar, doar livros, etc. Tanto Kom’Boa como Ashanti Alston receberam ajuda dessa organização anarquista nos Estados Unidos. Ashanti se recusou a ler, até que chegou à solitária e decidiu a ler. Ele percebeu que o anarquismo valoriza as lutas, a liberdade e a capacidade dos governados. É curioso que isso aconteceu comigo também. Eu tinha aversão ao anarquismo, nunca tive nenhum interesse em ler. Na universidade, nunca me foi passado nenhum texto anarquista. Toda referência aos anarquistas era negativa. Até que um dia um colega me apresentou A Conquista do Pão, do Kropotkin, e depois fui gostando demais, sobretudo da ideia de liberdade, de autogoverno, de que o povo pode se autogovernar, não precisa ser dirigido. Nos relatos de Ashanti:

finalmente comecei a meter a mão no tema (apesar de tudo o que eu tinha ouvido falar sobre o anarquismo até o momento). Fiquei realmente muito surpreso ao encontrar análises de lutas, culturas e formas de organizações populares – aquilo fez muito sentido para mim. […] O anarquismo me ajudou a ver que você, como indivíduo, deve ser respeitado e que ninguém é suficientemente importante para pensar por você. (ALSTON, 2015: 177)

                Isso também é algo que me encanta muito no anarquismo: que todos possuímos um saber, todos temos um poder no nosso próprio corpo, temos uma história e podemos construir e ampliar nossa perspectiva. Obviamente, a universidade ocidentalizada só quer impor goela abaixo um saber ocidentalizado, autoritário, racista, estadolátrico, em alguma medida capitalista ou socialista, mas sempre autoritário, negando o triplo epistemicídio. Penso até em ampliar o triplo epistemicídio para quádruplo epistemicídio, contra filosofias negras, indígenas, anarquistas e de dissidentes do patriarcado branco.

                Ashanti se deparou com um anarquismo branco: “No entanto, nada do que recebi tratava de pessoas negras ou latinas. Talvez houvesse discussões ocasionais sobre revolução mexicana, mas nada falava de nós, aqui, nos EUA”. Aqui, ele faz uma crítica a um tipo de anarquismo estritamente branco europeizado, que existe inclusive nas universidades brasileiras, com pessoas que se dizem anarquistas, mas só tratam do pensamento branco europeu. Nesse sentido, a perspectiva decolonial colabora demais para o anarquismo e, a partir daí, podemos colocar como síntese o anarquismo negro ou a perspectiva decolonial libertária.

PERSPECTIVA ANARQUISTA

Tanto Ashanti como Kom’Boa, que pertenceram ao Black Panther, perceberam que deveriam obedecer sem questionar. Ashanti nos traz as diferenças entre marxistas e anarquistas, e cita uma da qual participou ativamente: as organizações dos Panteras Negras, que têm um cunho marxista-leninista, em alguma medida maoísta, e são caracterizadas como centralizadoras, obedientes, hierárquicas, e cujos adeptos deveriam seguir o programa sem pensar. Isso tole totalmente a criatividade dos subordinados. Prestar obediência a um superior contraria a liberdade. Ashanti e Kom’Boa pensam que a perspectiva anarquista é da autonomia individual, descentralização, horizontalidade e autogoverno, permitindo que todas as pessoas possam se articular umas com as outras, criando comunas, federações, sem hierarquias.

Para Ashanti (2015: 181), “algumas de nossas ideias sobre quem somos como povo bloqueiam nossas lutas”. A comunidade negra não é um grupo monolítico. Parece que há pessoas que não sabem disso. É uma comunidade de comunidades, com muitos interesses diferentes. “Penso em ser negro não tanto como uma categoria étnica, mas como uma força de oposição para ver as coisas de forma diferente” (ALSTON, 2015:181).

Então, quando eu falo de um Anarquismo Negro, não está tão ligado à cor da minha pele, mas quem eu sou como pessoa, como alguém que pode resistir, que pode enxergar de uma forma diferente (…), viver de forma diferente. (ALSTON, 2015:181)

Ashanti desmistifica a ideia de que todo negro é igual. Eu não igual ao negro capitão-do-mato, ao negro da Fundação Palmares, não sou igual a muitos negros, faço questão de me diferenciar de muitos negros que possam defender algum tipo de autoridade. Não existe um essencialismo. Não devemos cair num essencialismo biológico, que justificou que éramos biologicamente inferiores pela argumentação absurda da supremacia branca. Combater isso não significa dizer o oposto. Eu não acredito nisso, nem Ashanti, Kom’Boa, bell hooks, Angela Davis, entre outros. Somos várias comunidades dentro de uma comunidade. Não somos um grupo monolítico. Mas isso não significa que não devamos nos ajudar. Precisamos nos ajudar mutuamente entre nós, e entre todos aqueles que se colocam em apoio a uma luta antirracista, anticapitalista, antipatriarcal, anti-LGBTfóbica, e por aí vai: “as comunidades negras já praticam os princípios do anarquismo”.

Muito do que já fazemos é anarquista e não envolve o Estado, a política ou os políticos. Nós tomamos conta um do outro, nos importamos com os filhos um dos outros, vamos para o mercado uns para os outros, encontramos maneiras de proteger nossas comunidades. Até mesmo igrejas ainda fazem as coisas de uma forma muito comunal, até certo ponto. (ALSTON, 2015:182-183)

Segundo Kom’Boa, para acabar com a ofensiva racista capitalista é necessário uma solidariedade entre os trabalhadores de todas as raças com base na ação direta. Para se garantir a libertação do povo negro, deve ser garantida não somente a destruição do racismo, como também do capitalismo. Daí, ele traz um componente também abordado pela filosofia decolonial. Os trabalhadores brancos devem defender os direitos de negros e outros grupos oprimidos, devem lutar pela unidade multicultural. A autodeterminação do movimento negro deve ser garantida. O movimento negro deve unir forças com movimentos de gays – de LGBTIA+, termo que na época não era reconhecido –, mulheres, trabalhadores radicais. O movimento anarquista sempre esteve muito aberto a pautas antiautoritárias. A toda forma de autoridade, opressão, a princípio, o anarquismo deve se opor. A luta pela libertação negra deve passar pela associação a outros oprimidos.

Existe a prática da ajuda mútua entre as comunidades negras. É só você subir uma comunidade, ir a uma favela, aos lugares mais pobres. Esse exercício da ajuda mútua é muito explícito, muito bonito e muito pouco valorizado. Não é necessário depender do Estado para se ajudar, para viver. Não é necessário depender de polícia e político, embora polícia, político e Estado queiram nos fazer dependentes o tempo inteiro. Não se investe dinheiro em comunidades justamente para fazer com que fiquem sempre dependentes desses políticos e que sejam reféns de políticos oportunistas que somente aparecem para pedir voto. É sempre a mesma ladainha, como diz Bezerra da Silva

Ele subiu o morro sem gravata

Dizendo que gostava da raça

Foi lá na tendinha, bebeu cachaça, até bagulho fumou

Foi lá no meu barracão e lá usou lata de goiabada como prato

Eu logo percebia mais um candidato para a próxima eleição

Mas o apoio mútuo foi historicamente boicotado pelos governantes a partir da criação da ideia de raça. Até a Revolução Francesa, havia trabalho de servidão na Europa. O campesinato branco era profundamente explorado pela nobreza. Esses servos brancos, para viajar da Europa para as Américas, tinham sua viagem bancada por alguém. Esse financiamento era cobrado. Normalmente, os servos brancos chegavam aos Estados Unidos e tinham que trabalhar durante anos para pagar a viagem, e trabalhavam de maneira semi-escrava. Nesse momento histórico, negros e servos brancos se associaram, em luta contra o poder de determinados governantes brancos.

A saída encontrada pelos governantes brancos foi criar a ideia de raça. Ao criar a ideia de raça, elevaram o status do servo europeu ao status de raça branca e, portanto, superior à raça negra. Descolou-se a possibilidade de associação entre servos brancos e escravizados negros. Nessa separação, esse trabalhador branco passa a ter determinados privilégios. Esse processo piorou a situação dos negros nos Estados Unidos. Não existia a ideia de raça até 1492. A ideia de raça foi criada para dominar, separar e para impulsionar o modelo capitalista de produção. A conseqüência natural da ideia de raça – que não existe, todos temos as mesmas capacidades cognitivas; somos biologicamente iguais – foi a opressão ainda mais profunda dos negros e indígenas. Isso também foi ruim para os trabalhadores brancos, que continuaram sendo explorados pelos governantes brancos.

O movimento negro deve negar o oportunismo dos partidos políticos. Kom’Boa faz uma crítica severa ao oportunismo dos partidos políticos nos Estados Unidos. Aquele que somente defende o combate ao racismo desloca o problema de exploração de classe, focando meramente na exploração de raça. Fazendo isso, você passa a jogar nos termos do adversário. Para Kom’Boa, temos que lutar profundamente contra o racismo. Os trabalhadores brancos devem reconhecer que existe racismo, devem nos acompanhar na luta antirracista, no combate ao privilégio branco. E, em conjunto, devem lutar contra o sistema capitalista, reconhecendo a necessidade de ajuda mútua com outras minorias.

Devem ser criados grupos antifascistas, à frente dos quais sempre estiveram os anarquistas, e antirracistas. Seja com Franco, na Espanha, ou Mussolini, na Itália, as frentes antifascistas tiveram um componente anarquista central que se alastrou por todas as partes. O antifascismo deve estar casado com o antirracismo. O movimento negro não deve se contentar em eleger políticos.

Alguns – geralmente a acomodada classe média Negra formada por profissionais, políticos ou empresários que participaram do movimento dos direitos civis em 1960 por poder ou destaque – vão dizer que não há mais nenhuma necessidade de lutar nas ruas pela liberdade Negra durante a década de 1990. Eles dizem que nós já “chegamos lá” e agora estamos “quase livres”. Eles dizem que a nossa única luta agora é para “integrar o capital”, ou ganhar riqueza para si e para os membros de sua classe social, embora eles falem da boca para fora sobre “empoderar os pobres”. Olha, dizem eles, nós podemos votar, nossos rostos Negros estão por toda a TV em comerciais e comédias de costume, existem centenas de milionários Negros, e temos representantes políticos nos corredores do Congresso e em repartições do Estado em todo o país. Na verdade, dizem eles, existem atualmente mais de 7.000 autoridades Negras eleitas, várias das quais governam as maiores cidades do país, e há até mesmo um governador de um estado do Sul, que é um Africano-Americano. Isso é o que eles dizem. Mas será que isso conta toda a história? (ERVIN, 2015: 41)

Existe uma classe média negra que acredita que a luta não é mais necessária. Por mais que haja negros políticos e ricos, o sistema não comporta que todos os negros sejam libertos. Pensando no Brasil, podemos pensar nas políticas afirmativas, que apoio totalmente. Aliás, lutei muito pela inclusão de cotas na pós-graduação. O primeiro programa que adotou cotas na pós-graduação no IFCS é o de História Comparada, do qual participo e sou coordenador. A luta por cotas é fundamental, todavia, não garante uma vida digna a todos os negros e indígenas.

A discriminação reversa tornou-se o grito de guerra de todos os racistas que tentam reverter os ganhos de direitos dos negros. As conquistas dos negros são vistas como um entrave para o emprego do branco. É deplorável falar em discriminação reversa. O racismo é sempre institucional, é garantido por instituições, pelo Estado, pelo capitalismo. Não há racismo reverso, pois não há instituição que garanta privilégios para negros em detrimento de brancos, mas há várias instituições que estão estruturadas de tal maneira a garantir privilégios para brancos em detrimento de negros e indígenas. Nos Estados Unidos, o ex-presidente Reagan buscou imprimir crenças racistas que, na verdade, buscavam atacar direitos; dizia-se que os direitos e serviços para negros e mais pobres causavam inflação. Retirar direitos dos trabalhadores é implementação de racismo. Não investir em escolas públicas é uma política racista. Não existir hospital público e moradias públicas é uma política racista. Investir em prisão é uma política racista.

O fato é que estamos em uma situação tão ruim ou ainda pior, economicamente e politicamente, como quando o movimento dos direitos civis começou na década de 1950. Um em cada quatro homens Negros está na prisão, em liberdade vigiada, liberdade condicional ou detido; pelo menos um terço ou mais das unidades familiares Negras são famílias monoparentais hoje atoladas na pobreza; o desemprego oscila entre 18-25 por cento para comunidades Negras; a economia das drogas é o empregador número um da juventude Negra. (ERVIN, 2015: 41-42)

Isso também diz respeito ao Brasil. É a comprovação de uma política institucional racista. A partir das instituições percebemos o que é racismo.

a maioria das unidades habitacionais precárias ainda está concentrada em bairros de Negros; Negros e outros não brancos sofrem com a pior assistência à saúde; e as comunidades Negras são ainda subdesenvolvidas por conta da discriminação racial por parte dos governos municipais, companhias hipotecárias e bancos, que traçam uma “linha vermelha” impedindo bairros Negros de receberem desenvolvimento comunitário, habitação e empréstimos para pequenas empresas, mantendo nossas comunidades pobres. (ERVIN, 2015: 42)

Além disso, há um ressurgimento do racismo e do conservadorismo entre amplas camadas da população branca, que é um resultado direto da campanha de direita. (ERVIN, 2015: 43-44)

O quadro para negros é o pior possível, mesmo que tenham ocupado espaço no parlamento. Quando Kom’Boa escreveu, Obama ainda não havia sido eleito. Mesmo após sua eleição, esse padrão não se alterou. Isso denota que não basta a representação política, porque os representantes são facilmente cooptados.

Kom’Boa previu o crescimento do movimento de extrema direita que está associado à crise do capitalismo. O aumento do desemprego faria com que muitos brancos percam seus empregos e beirem a linha da miséria, e isso gerará um problema racista. A linha da direita dirá que esses brancos estarão perdendo seus empregos para os negros, sendo um estímulo à segregação racial. É uma política deliberada de extermínio de povos negros e indígenas. A base do movimento fascista é composta por jovens brancos que possuem dificuldades econômicas e acham que os não brancos, homossexuais, mulheres e movimentos radicais tomam seus empregos. Aqui também há um componente patriarcal branco, que subordina não só todos os negros e também a comunidade LGBTIA+ e cria um ódio contra essas pessoas.

Kom’Boa propõe uma unidade de classe entre trabalhadores negros e brancos para dar fim ao capitalismo, ao Estado, e início ao autogoverno. Em uma luta antirracista, é melhor que todos possam ser donos de seus meios de produção coletiva e autogestionariamente, ou é melhor termos uma estrutura hierarquizada, com Estado, patriarcado, capitalismo. O veio anarquista negro escolheria a primeira opção. A perspectiva decolonial libertária compreende o racismo como organizador de tudo e libertária porque entende que o Estado e todas as instituições são deploráveis para negros e indígenas e trabalhadores brancos. Como dizia Bezerra da Silva, todo trabalhador pobre branco também sofre uma exploração.

Para a unidade de classe, Kom’Boa propõe guerrilhas clandestinas, que os nazistas e a Klan sejam confrontadas por ação direta e que seja dado um fim à supremacia branca.

O privilégio da pele branca é uma forma de dominação do capital sobre o trabalho branco, bem como sobre o trabalho de imigrantes oprimidos, não apenas fornecendo incentivos materiais para “corromper” os trabalhadores brancos e colocá-los contra os Negros e outros trabalhadores oprimidos. Isso explica a obediência do trabalho branco ao Capitalismo e ao Estado. (ERVIN, 2015: 36)

Para avançar na luta, o branco deve abdicar de seus privilégios, reconhecer o racismo e lutar com os negros.

[…] há incentivos materiais para este oportunismo do trabalhador branco: melhores empregos, salários mais altos, melhores condições de vida em comunidades brancas, etc, enfim, o que veio a ser conhecido como o “estilo de vida da classe média branca”. (ERVIN, 2015: 37)

                Pela abolição da ideia da raça branca, Kom’Boa afirma que

A luta contra o privilégio da pele branca também requer a rejeição da identificação cruel de norte-americanos como povo “branco”, em vez de Galês, Alemão, Irlandês, etc, como sua origem nacional. Esta designação “raça branca” é uma supernacionalidade artificial projetada para inflar a importância social das etnias europeias, e mobilizando-as como ferramentas no sistema Capitalista de exploração. Na América do Norte, a pele branca sempre implicou liberdade e privilégio: a liberdade de obter um emprego, de viajar, de obter mobilidade social em relação a sua classe de origem, e todo um mundo de privilégios Eurocêntricos. Portanto, antes de uma revolução social ter lugar, deve haver uma abolição da categoria social da “raça branca”. (ERVIN, 2015: 38)

A existência de raça é uma criação artificial para contribuir na manutenção da exploração capitalista.

Sendo assim, como os ideais do anarquismo podem ajudar ao movimento?

Simplificando, isso significa que as pessoas devem se governar, e não os governos, patetas políticos ou líderes autonomeados. O Anarquismo também defende a autodeterminação de todos os povos oprimidos, e seu direito de lutar pela liberdade por qualquer meio necessário. Então, qual o caminho para o movimento Negro? Continuar a depender de políticos democratas oportunistas e corruptos como Bill Clinton ou Ted Kennedy; o mesmo velho grupo de “líderes” vendidos da classe média do lobby dos direitos civis; um ou outro das seitas autoritárias leninistas, que insistem que eles e só eles têm o caminho correto para a “iluminação revolucionária”; ou, finalmente, a construção de um movimento de protesto revolucionário de base para lutar contra o governo racista e seus governantes? (ERVIN, 2015: 44)

Está muito transparente a crítica profunda à tutela. A representação política não consegue resolver problemas coletivos, porque a solução de problemas coletivos passa por organização coletiva.

Seja com as pessoas no trabalho ou as pessoas que passam o tempo na esquina, como podemos planejar e trabalhar juntos? Precisamos aprender com as diferentes lutas ao redor do mundo que não sejam baseadas em vanguardas. (ALSTON, 2015: 183)

Aqui Ashanti fez uma crítica profunda ao marxismo.

Como podemos construir com todos esses povos para começar a criar uma visão da América que seja para todos nós? (ALSTON, 2015: 184)

Para todos nós. Ele está ampliando isso, porque o anarquismo negro não tem problemas com branco, com corpo nenhum. Aliás, quero destacar isso com vocês. O anarquismo, enquanto teoria, filosofia de vida e filosofia política, não é contra nenhum corpo, nenhum ser. O anarquismo é contra as instituições, porque são as instituições que estabelecem a desigualdade entre as pessoas. O que Donald Trump é de melhor do que cada um de nós aqui? Nada. Ele só é o que é porque há uma instituição que o nomeia como presidente da república do país mais poderoso do mundo. O que os donos das empresas são de melhor do que nós? Nada, mas há instituições econômicas capitalistas que fazem deles superiores. O que os grandes fazendeiros são de melhor do que a gente? Nada, mas há a instituição da propriedade privada da terra – que é um roubo, segundo Proudhon – que faz deles superiores a nós. São as instituições. O que me faz ter de obedecer um homem de toga, um homem fardado e armado? São as instituições. O anarquismo é contra as instituições. Sem instituições, não há desigualdades. A luta do negro pode ser casada com a luta do branco, do branco explorado, oprimido, governado, desde que esse branco reconheça que existe racismo. Deve ser uma luta contra todas as instituições que estabelecem desigualdade. A própria ideia de racismo é estabelecida institucionalmente. Todo racismo é institucional, porque é pautado e praticado por meio das instituições.

                Qual é o potencial do anarquismo para impulsionar a nossa luta antirracista?

Estarmos abertos a tudo o que aumenta a nossa participação democrática, a nossa criatividade e nossa felicidade. (ALSTON, 2015: 184)

Combater organização opressiva, hierárquica, centralizada. Entender que todos devem ter direito de expressão. Defender a horizontalidade, as liberdades, o amor, a construção coletiva!

Há uma necessidade para esses tipos de vozes dentro de nossas diversas comunidades. Não apenas as nossas comunidades de cor, mas em toda comunidade há uma necessidade de parar o avanço dos planos pré-fabricados e confiar que as pessoas podem descobrir coletivamente o que fazer com este mundo. (ALSTON, 2015: 184)

Em sua releitura da história da África, Ashanti muda completamente seus referenciais quando adota uma lente anarquista de análise, privilegiando as ideias de liberdade e igualdade no sentido de autogoverno, que ocorreu muito fortemente na África, sendo denominada em Angola como “poder popular”. Nessa relação de horizontalidade, sem hierarquias, comandos nem autoridade, e da ajuda mútua, presente em diversas comunidades negras nos EUA.

Encontrei muitos exemplos de práticas anarquistas nas sociedades não européias, desde os tempos mais antigos até o presente. Isso foi muito importante para mim […] Fui encorajado por coisas que encontrei na África – (…) por lutas modernas que ocorreram no Zimbabwe, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Ainda que fossem liderados por organizações vanguardistas, vi que as pessoas estavam construindo comunidades democráticas radicais na base. Pela primeira vez, nesses contextos coloniais, os povos africanos estavam criando o que era chamado pelos angolanos de “poder popular”. Este poder popular tomou uma forma muito antiautoritária: as pessoas não estavam só conduzindo suas vidas, mas também as transformando enquanto lutavam contra qualquer poder estrangeiro que os oprimia. (ALSTON, 2015: p. 179)

                Entenda como ele destaca as ideias de busca por liberdade, por uma luta com base em Ação Direta – que significa essa luta independente, em que você e seu coletivo não precisam esperar que deputados, presidentes, senadores façam por você, sem que precisemos delegar soberania a ninguém. Ashanti também identifica em comunidades e sociedades africanas a prática de ajuda mútua, que também podemos encontrar em sociedades indígenas, em seus autogovernos; não há ideia de possessividade. Os frutos de pesca e caça são compartilhados por toda a comunidade. Aquilo que Kopenawa chama de matihi, de mercadoria, é criticado por sociedades indígenas. Inclusive, sabemos que várias línguas indígenas sequer tinham pronomes possessivos. A língua representa aquilo que, evidentemente, existe na sociedade. Sem pronome possessivo, não há esse tipo de prática de posse, o que significa que a sociedade é pautada em ajuda mútua.

                Agora, se a lente de análise de Ashanti fosse liberal, ou seja, se valorizasse dinheiro, capitalismo e produção de mercadoria, ele entenderia que, em sociedades africanas, haveria mercado, dinheiro, que a produção capitalista africana teria antecedido a europeia. Por uma perspectiva anarquista, dinheiro, capitalismo, exploração e mercado não são valores positivos, ao contrário do pensamento liberal, segundo o qual esses valores são intrínsecos à sociedade – o que é historicamente falso.

                As lutas pela libertação na África em sua origem eram antiautoritárias, buscavam o poder popular, mas as vanguardas estavam obcecadas pela governança, por estabelecer punições, um exército permanente e desarmar a população. Quando o partido da vanguarda assumiu o poder estatal, a liberdade continuou restrita, “porque eles substituíram um opressor estrangeiro por um opressor nativo.” (ALSTON, 2015: p. 180) Com lente anarquista, Ashanti trouxe para análise as lutas de libertação na África, lutas anti-coloniais, que inclusive sofrem de historicídio. No fundo, as grandes lutas por libertação na África foram de origem marxista, e o marxismo-leninismo pressupõe que é preciso haver uma vanguarda revolucionária que guie a população à revolução. Muitos partidos revolucionários marxistas, dos quais Fanon participou, lutaram pela libertação dos povos africanos do colonialismo. O problema colocado por Ashanti é que esses partidos de vanguarda, que conduziram a revolução, em vez de estabelecerem um autogoverno popular, se colocaram como governo, tomaram as armas da população, detiveram o monopólio do uso da força e impuseram uma lógica governamental sobre os governados. Vários países africanos se transformaram em ditaduras. O que era para ser uma ditadura do proletariado, para usar um termo marxista, se tornou uma ditadura de burocracia estatal governante. Substitui-se uma elite branca opressora por uma elite negra opressora. Ambas as opressões ocorriam pelo Estado. Esse tipo de crítica somente pode ser feita pela visão anarquista.

                Ao mesmo tempo, Ashanti percebeu a ideia do poder popular como prática do próprio povo.

O próprio povo tem que criar estruturas em que articulem sua própria voz e em que tomem suas próprias decisões. Eu não recebi isso de outras ideologias: recebi do anarquismo. (ALSTON, 2015: 180)

                O povo não deve nem ser governado por um estrangeiro branco opressor nem por uma vanguarda que se diz revolucionária, mas que impõe uma ditadura aos governados quando assume o poder estatal. Ashanti propõe, pela perspectiva anarquista, que o povo deve se autogovernar, gerir as terras dos países, pensar em como circular a comida, como exercer a ajuda mútua. O foco sai de um plano capitalista liberal europeu e de um foco marxista estatal autoritário – embora se diga socialista – e vai para um foco em que a liberdade é o ponto central, somente podendo ser alcançada com autogoverno e igualdade, e acarretando o fim da propriedade privada. Não podemos deixar de pensar na perspectiva do fim das discriminações, de aceitar o outro como ele é, com suas orientações sexuais, identidades de gênero, etc. Esse é um aspecto fundamental para o pensamento libertário e anarquista.

Ashanti defende o jazz como prática da liberdade. O jazz para a comunidade negra, nos Estados Unidos, equivale ao samba aqui no Brasil.

É um dos melhores exemplos de uma prática radical existente porque ele assume uma conexão participativa entre o individual e o coletivo e permite a expressão de quem você é, dentro de um ambiente coletivo, com base no gozo e no prazer da música em si. (ALSTON, 2015: 183)

                Isso é lindo. Não há uma regra do jazz. No grupo, cada um vai tocando e criando aquela harmonia gostosa. Lembrei, obviamente, do samba de roda. Quando você pega um repinique e faz um corte no meio do samba, é uma coisa linda, quando você improvisa com um cavaco, com um banjo, com tantan, um surdão, com o chocalho, o tamborim, o pandeiro – o pandeiro é improvisação o tempo inteiro! É a coisa mais linda do mundo. E isso é negro, é lindo. Agora estamos olhando mais do ponto de vista cultural que é resgatado por Ashanti. Essa prática do jazz – e a lente anarquista me possibilita fazer isso – e essa roda de samba, com liberdade para os que estão tocando e participando, aquela kizomba, para usar o termo do Luis Carlos da Vila, tem a prática da liberdade, da autonomia e do autogoverno. Não há ali um comando como uma orquestra. Agora, no samba de roda, de terreiro, de fundo de quintal – é por isso que eu prefiro muito mais isso! Diz muito mais respeito a mim do que uma coisa muito hierarquizada, toda fechada. Eu gosto de coisas na liberdade, no improviso. É isso que Ashanti está resgatando aqui, essa ideia da improvisação, da liberdade, da autonomia, da criatividade, da alegria e do prazer. A capoeira também não tem uma regra, ginga para um lado e para o outro, é livre o tempo inteiro.

                E o que Ashanti coloca como os desafios para o movimento negro é “Como podemos nutrir cada ato de liberdade?” (ALSTON, 2015: 183).

Aqui, voltamos ao aspecto sobre como podemos nos autogovernar, estabelecer horizontalidade, em busca de felicidade, e combater essas perspectivas pré-fabricadas, ocidentalizadas, eurocentradas, capitalistas, estadolátricas, patriarcais e racistas. Esse é o grande desafio para o nosso movimento.

Como um Pantera, e como alguém que passou à clandestinidade enquanto guerrilha urbana, pus a minha vida no limite. Eu assisti meus companheiros morrerem e passei a maior parte da minha vida adulta na prisão. Mas eu ainda acredito que podemos vencer. (ALSTON, 2015: 185)

O anarquismo, se significa alguma coisa, significa estar aberto para o que quer que for preciso em nosso pensamento, em nossa vivência e nas nossas relações – para vivermos plenamente em vencermos. (…) Vocês todos podem fazer isso. Você tem a visão. Você tem a criatividade. Não permitam que ninguém bloqueie isso. (ALSTON, 2015: 186)

                Que coisa linda. Não permitam que ninguém bloqueie isso. Não se vendam para uma perspectiva ocidentalizada difundida em todas as universidades, governanças socioculturais, meios de comunicação, em todas as formas de opressão que existem em nossa sociedade. Você tem que buscar sempre a liberdade – eu acho, é minha sugestão. Luto por ela e luto coletivamente.

Referências

ALSTON, A. Anarquismo Negro. (2015) In: ERVIN, Lorenzo. Anarquismo e Revolução Negra e outros textos de anarquismo negro. São Paulo: Sunguilar.

BAKUNIN, M. (2006) Textos anarquistas; seleção e notas de Daniel Guérin. Porto Alegre: L&PM, pp: 108-131; 154-157.

DE MORAES, Wallace S. Teses da teoria política anarco-comunista – reflexões a partir do pensamento de Kropotkin. In De Moraes e Jordan (org.) Teoria Política Anarquista e Libertária.

ERVIN, Lorenzo Kom’Boa. (2015) Anarquismo e Revolução Negra e outros textos de anarquismo negro. São Paulo: Sunguilar.

FANON, Frantz (1968). Os condenados da terra. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira.

______________(2008) Pele negra, mascaras brancas. Salvador: EDUFBA

KOPENAWA, Davi & ALBERT; Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras.

KROPOTKIN, P. (2005), Palavras de um revoltado. São Paulo: editora Imaginário.

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