Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo, dia 20 de novembro de 2022.
Wallace de Moraes
Prof. da UFRJ. Membro do Quilombo do IFCS.
Todo ano no mês de novembro alguns holofotes se voltam para os temas do racismo. Alguns se questionam: como ser antirracista? Existem respostas múltiplas. Sob uma perspectiva negra, é imprescindível aprender com as nossas ancestrais: heroínas, pois base da pirâmide das hierarquias sociais, mas, simultaneamente, fortificações das nossas culturas.
Assim, começo com duas ex-empregadas domésticas, ofício destinado, em um país racista, fundamentalmente para as mulheres com mais melanina na pele. Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo relataram experiências em seus livros que dificilmente seriam escritas por brancas que desconhecem, na pele, a junção das opressões de raça, classe, gênero e de território. A escassez de comida e os perigos da vida, pintados por elas com perseverança, ficam mais patentes, trazendo um retrato realista do cotidiano de várias pretas, que possuem dificuldades para alimentar seus filhos.
Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez comungavam da necessidade da superação do “mito da democracia racial brasileira”, que ajudou a obstar a organização das lutas antirracistas no país. Lélia asseverou: “não é por acaso que a neurose cultural brasileira tem no racismo o seu sintoma por excelência. Assinalou que diferentes palavras como “bunda” são de origem banto, representando o nosso “pretuguês”. Lélia também criou o conceito de “Améfrica Ladina” para marcar a importância negra nas culturas do nosso continente, propositalmente esquecidos nas escolas e universidades. Neusa Santos, através de estudos psicanalíticos, propôs o conceito de “tornar-se negro” que significa não só reconhecer-se, mas também admitir que foi massacrado, humilhado, explorado. Daí vem a necessidade de comprometer-se em resgatar sua história e suas potencialidades. Assim, educa sobre o nosso devir.
bell hooks (escrito assim mesmo em minúsculo para referenciar sua avó, coisas dos nossos compromissos ancestrais) nos instrui sobre a rebeldia de quebrar paradigmas racistas, transgredindo todos os valores eurocentrados. Em comum com Grada Kilomba, fala das “políticas do cabelo” e do aculturamento imposto às negras como violências de diferentes matizes. É de chorar ler um relato de uma menina negra em conflito com seu cabelo.
Angela Davis e Lucy Parsons com flores e fuzis ampliam as críticas da vida cotidiana para instituições como capitalismo, Estado e prisões. Chimamanda Adichie chamou a atenção para os perigos da “história única” que é iminentemente branca. Toni Morrison corroborou com a ideia conceitual dos “outros” (os não brancos). Nesse veio, Cida Bento identificou o “pacto da branquitude” que busca explicar como o universal é branco e exerce uma espécie de apoio mútuo que exclui negros de espaços de poder. Também chamado por “pacto narcísico”.
Kimberlé Crenshaw em suas pesquisas observou que as mulheres negras eram discriminadas por raça e por gênero, sendo preteridas em lugares onde brancas (secretárias nos escritórios) e homens negros (operários na fábrica) eram admitidos. Como resultado, criou o conceito de interseccionalidade, que significa a junção de várias opressões sofridas por um único corpo. As mulheres negras são seus principais alvos.
Aprofundando essa crítica, Françoise Vergès e Ochy Curiel propõem a união das lutas antipatriarcais, anticapitalistas, anti-autoritária, anti-nacionalista e antihomofóbica sob o viés do antirracismo.
Do teórico para a realidade. Nesse momento, milhares de mulheres estão com dificuldades para alimentar seus filhos. Muitas não têm um lugar decente para morar. Falta emprego, terras, respeito e autonomia. Algumas estão nas prisões, outras nas diferentes formas de prostituição que uma sociedade autoritária, militarizada e hierarquizada nos lega. A maioria delas é negra. Quantas delas poderiam ter sido citadas nesse artigo? Precisaremos demais dessas mulheres.
Nosso dever se amplia, quando sabemos que vivemos em um país onde 58milhões de pessoas votaram em um candidato que não reconhece a existência de racismo, de sexismo, tampouco de homofobia. Temos um trabalho árduo pela frente que não deve se resumir a novembro. Sobre os principais alvos do Necro-Racista-Estado no Brasil, homens negros, falaremos em outra oportunidade. Viva todos os quilombos! Viva nossas ancestrais! Viva a resistência, a luta e a ação direta contra todas as diferentes opressões!