RACISMO E GENOCÍDIO DO POVO NEGRO: COMO CONSTRUIR UMA SAÍDA?
Live de 11 de junho 2020¹
Autor: Wallace de Moraes
Transcrição/edição: Cello Latini
Para falar de racismo institucional, é importante fazer um histórico de como ele foi construído. Em homenagem a todos os George Floyds, a todas as Ágathas, a todos os João Pedros e a todos nós que sofremos isso o tempo inteiro e que somos alvos dessa necropolitica, como define Mbembe.
Primeiramente, a ideia de racismo institucional ocorre com a conquista das Américas. Esse é o ponto fundamental que podemos cravar. A conquista das Américas faz com que estas terras que antigamente pertenciam aos indígenas fossem roubadas, para usar um termo de Proudhon, e então foram trazidos africanos para produzir riquezas. O processo de transformação de africanos em escravos, o assassínio de povos indígenas e a tomada de suas terras inicia um processo de produção de mercadoria para o mercado mundial. Assim, foram dados os primeiros passos do regime capitalista de produção. Em outras palavras, a escravidão, o colonialismo e a transformação da terra em mercadoria são os primeiros passos do modelo capitalista de produção.
Para manter negros africanos escravizados, explorados, humilhados, foi criado um modelo de Estado, que é o modelo de Estado moderno. Esse modelo de Estado possui um braço central: o militarismo. Como disse Fanon, a ponta de lança da escravização e da humilhação de nossos ancestrais ocorreu com a ponta do sabre, com a arma. Essa violência é militarista, e é amparada pelo Estado e pela lei, pelo Direito. Neste momento histórico, surgiu a ideia de raça, segundo autores como Aníbal Quijano e Ramon Grosfoguel. Nos moldes em que vivemos hoje, o racismo baseado na cor da pele nasce nesse período.
Se temos um mínimo de compromisso com nossos ancestrais, com João Pedros, com George Floyds e outros, precisamos ter clareza em relação às instituições que nos humilham e nos matam. Essas instituições têm nomes muito claros: Estado, polícia, militarismo, capitalismo e podemos chamar esse conjunto de instituições por colonialismo. Não dá para nenhum de nós pensarmos, seja por qualquer meio, em acreditar nessas instituições. A partir daí, temos racismo institucional em nossa sociedade.
Como se transforma negros em escravos e depois a literatura nacional, os chamados clássicos, que ocupam nossas universidades até hoje – no IFCS/UFRJ, onde dou aula, são autores fundamentais –, dizem que a escravidão foi branda, que o negro foi bem tratado? Eles tentam amenizar a própria ideia de escravidão, se é que é possível, que não tenha sido algo cruel, um assassínio, como disse Proudhon. Para Mbembe, a escravidão é uma morte em vida.
O Samba da Mangueira de 1988 fala, com muita clareza, que os negros saíram da senzala, mas agora estão nas favelas. As pessoas nas favelas hoje estão passando fome. Temos muita clareza de quem é responsável por isso. E não mudou nada com relação à colonialidade. Continua sendo o Estado governado por um governo necrofílico, ou seja, que tem desejo pela morte de negros e indígenas. Mas não só no atual governo. Em 2014, o governo autorizou que um exército invadisse a Maré. Essas invasões acontecem há mais de 500 anos. Não podemos ter nenhuma crença nessas instituições. Branco pode até crer. Mas nós, negros, não podemos crer em instituições desse porte. Polícia, exército, prisões, todos foram criados para nos matar, para nos humilhar, nos transformar em produtores de riquezas para governantes.
Eu sou um professor universitário concursado. Em minha universidade, tenho colegas que não me aceitam, porque sou negro. Eles até aceitam se tem alguém que é subordinado, se tem um funcionário negro. Porque as negras faziam as comidas deles desde a casa grande, e agora se tem um negro trabalhando para eles, está ótimo. Mas um igual eles não querem. A priori, isso acontece em todos os setores da sociedade, sejam os negros nas favelas, os negros de elite, sempre haverá uma desconfiança com relação ao papel dele, à sua capacidade de pensar.
Tem um conceito, na perspectiva decolonial, que fala de três formas de colonialidade: do poder, do saber e do ser. Nessas três perspectivas, existem os afortunados e os condenados da terra. Os condenados da terra somos nós. Os afortunados nós já sabemos quem são. Devemos ter muita clareza contra o quê estamos lutando. Esse “o quê” são todas as instituições que nos fizeram de escravos e subordinados.
O CAPITÃO DO MATO E A POLÍCIA
As polícias e as forças de repressão no Brasil e na Américas Latina foram criadas justamente para manter os pretos e os indígenas no “lugar deles”. O lugar do negro é o lugar da produção de riqueza para o branco. O negro não é considerado humano, mas como um animal. O negro deve servir ou como um cavalo, que vai arar a terra, ou como um touro, que vai puxar a carroça, ou como uma abelha, que produzirá alimento, ou como vários outros animais adestrados que sirvam à classe governante branca. Ele pode servir como um cachorrinho adestrado, um passarinho na gaiola, um neguinho para chamar de seu, um indiozinho para chamar de seu. O que se quer dele? Que ele produza riqueza sem reclamar de sua situação de exploração. Se entendemos esse processo, que é o papel destinado ao negro pela elite de governantes brancos, poderemos entender o racismo na sociedade brasileira.
Todo negro que não se subordina ao papel que lhe é destinado enfrenta dois caminhos: prisão ou morte, cadeia ou o cemitério. Se o negro fizer tudo direitinho, vai trabalhar na casa da patroa, como empregada doméstica, na indústria, como produtor, e terá um salário inferior ao do branco. Só por isso não exterminaram todos os negros até hoje. A tentativa de embranquecimento, de trazer os imigrantes europeus para ocupar o “lugar do negro”, para jogar os negros aos piores lugares. A ideia de raça foi criada para subordinar trabalhadores negros em relação a trabalhadores brancos.
Meus pais eram de Vigário Geral, depois morei na Baixada Fluminense até os 9 anos, e desde então até os 26 anos fui criado em Irajá. Eu saía pouco daquela região. Quando eu ia para a Zona Sul, à praia, por exemplo, a diferença era gritante. Ipanema e Leblon são uma pequena Europa. A mesma coisa acontece com os bairros nobres de todos os países latino-americanos. Você vai para os bairros nobres em Colômbia, Venezuela, Peru, e praticamente são todos brancos. Em outros países de América do Norte, passando pelo México, são todos brancos. Quando saímos dos bairros nobres e vamos ao interior, vemos o verdadeiro povo. Na universidade – na época, não havia cotas –, eu percebi como eu era preto, e como isso fazia diferença.
A polícia militar do Rio de Janeiro tem um símbolo: a cana de açúcar, ou seja, para manter os negros no canavial, que Grada Quilomba traduz como plantation. O negro deve morar fora da cidade e não pode ser exterminado, pois deve produzir riqueza. Não é uma questão só de raça; é raça e classe. Mas mais do que isso: é raça, classe e gênero. Quando você olha para uma mulher negra, seu papel na sociedade é de empregada doméstica. Isso é racismo.
O QUE HÁ EM COMUM ENTRE LUTAS ANTIRRACISTA E ANTIFASCISTA?
O fascismo é racista. Ponto. Foi um movimento que tinha como base a ideia de uma raça ariana, inclusive dentro da própria Europa. Os alemães criaram a ideia de raça ariana, que deveria dominar as outras raças. O darwinismo social sustentou “cientificamente” o racismo, e, em alguma medida, sustentou o racismo ariano alemão sobre outros povos europeus. A luta antifascista é, portanto, antirracista. Para além disso, lutar contra o fascismo é lutar contra todas as instituições que nos escravizaram, porque o fascismo é a exacerbação de um Estado forte, da polícia, do exército, da violência contra o outro, da autoridade, da hierarquia. Inclusive, o fascismo não é especificamente, nem exclusivamente, contra o negro, mas contra o outro de qualquer raça, incluindo o outro branco europeu.
Lutar contra o fascismo é um dever de todos, negros, brancos, mulheres, homossexuais, transexuais, porque é uma instituição que não admite o outro enquanto tal. É bom lembrar que Hitler exterminou homossexuais para fazer experimentos, estabelecendo a homossexualidade como uma doença. A sociedade fascista é extremamente autoritária, patriarcal, hierárquica, militarista e igrejista. Por que igrejista? Pois nos uniformes dos soldados de Hitler, constava a insígnia “Deus está convosco”, e tanto Hitler como Mussolini tiveram amplo apoio da Igreja Católica e das Igrejas Protestantes, no caso da Alemanha. Foram estas mesmas igrejas que afirmavam que negros não tinham alma.
O antifascista tem que ser antirracista. Caso contrário, não há congruência em seu raciocínio. As lutas, por exemplo, anarquistas ao longo da história foram antifascistas, com a perspectiva de lutar contra aquilo que for autoritário e hierárquico, em favor de liberdade e igualdade como princípios fundamentais. Daí, compreendemos que uma luta antirracista é antifascista.
Sempre haverá disputa de narrativas. Precisamos saber com muita clareza quem são nossos inimigos e quem são nossos aliados. Se não, vamos atirar em nosso aliado, mesmo que não pense exatamente como a gente, mas é alguém que está lutando conosco por um mesmo objetivo. É fundamental compreender isso.
Do ponto de vista teórico, os liberais, como John Locke, o pai do liberalismo, eram proprietários de escravos. Se há uma teoria à qual o movimento negro precisa se opor veementemente é o liberalismo. Todos os Estados que nos escravizaram, em grande medida, seguiam os princípios do liberalismo. Hoje, os Estados Unidos se diz liberal. O Brasil defende os princípios do liberalismo. E estamos morrendo o tempo inteiro. Eu fico surpreso quando algumas pessoas pretas não conseguem ver isso, e acabam defendendo os próprios princípios do liberalismo, como mercado, dinheiro, capitalismo, sem compreensão histórica das instituições que nos escravizaram e nos mataram. A disputa de narrativa passa por isso. Temos uma teoria política que afirma não haver racismo aqui, ou que nossa escravidão foi branca, ou que havia boa relação entre escravos e senhores. Isso é um absurdo, mas está em nossas universidades. Meus colegas ensinam isso, e nossos alunos aprendem. O livro de Gilberto Freyre é um dos mais vendidos fora do país, e passa essa imagem absurda. Um movimento que se quer negro, que lute por liberdade, não pode ser liberal. Os liberais defendem a liberdade de mercado, e não liberdade completa, pois foram eles que escravizaram os negros.
AÇÃO DIRETA NOS QUILOMBOS
Vidas Negras importam significa o seguinte: temos um extermínio em curso, há 500 anos, dos corpos negros, em toda a América e em África. Chega um ponto em que precisamos dizer que a vida negra importa, e não só a do branco. No fundo e ao cabo, se está chamando atenção para esse extermínio cotidiano que ocorre no Brasil e na América. É fundamental que tenhamos essa palavra de ordem, e acho que ela pode ser usada com a palavra de ordem “Só o Povo Salva o Povo.”
Qual o significado dos quilombos no Brasil? Sabemos que existe um sistema com Estado, Lei, Governo, um sistema econômico, construído para oprimir e explorar o negro. O Direito e a Lei funcionam para coagir e dominar os negros. Uma saída era aceitar a escravidão, criando várias formas internas de sobrevivência e de resistência, como a própria capoeira. E outra saída era a fuga. Obviamente, essa era a intenção de todos. Vários negros conseguiram fazer isso. Fugiram de seu cativeiro e foram formar quilombos. Esse é o melhor exemplo de Ação Direta para nós, negros, aqui no Brasil, porque esse negro não votou em ninguém, não dependeu de nenhum patrão, ele mesmo construiu, por seu próprio caminho e por sua própria força, seu meio de sair da escravidão. Isso é Ação Direta pura. Na formação dos quilombos, podemos usar vários outros conceitos importantes: a horizontalidade, a participação popular, a não criação de outro Estado, o não estabelecimento de formas de comércio, em suma, a não escolha de nem de uma produção capitalista, nem do Estado. Isto é, o sistema do dominador não foi replicado pura e simplesmente.
Ao praticar Ação Direta e fugir desse processo de exploração e dominação, os quilombos construíram um novo mundo oposto ao mundo do branco dominador. Dentro desses quilombos, havia, inclusive, indígenas, e brancos trabalhadores. Todos, de forma federada, conseguiram contribuir e se proteger do militarismo e do para-militarismo². Tanto militares oficiais como para-militares tentaram destruir os quilombos e matar os rebeldes.
Todo movimento negro também deve usar um conceito muito caro aos anarquistas: o abolicionismo penal. Porque quem está nas prisões somos nós, são nossos antepassados. A prisão é usada para garantir a desigualdade, a escravidão, o sistema racista, a supremacia branca das governanças sociais, e para manter encarcerados aqueles que estão no processo produtivo, produzindo riqueza para os ricos, e que fogem disso. Todo negro, além de ser anti-estatal, deve ser abolicionista penal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não podemos nunca ter crença na academia. A academia foi construída pelos negros, que levantaram seus tijolos. Mas eles, nem seus filhos, podem estudar lá. A academia não pode ter teorias contrárias ao que ela divulga, pois cumpre o papel de justificar o racismo. A academia é o Estado. Meus alunos no IFCS saem da universidade mais conservadores do que quando entraram. É colocada uma camisa de força neles que os torna estadolátricos, para idolatrar todas as instituições que nos escravizaram, que nos matam e nos prendem até hoje, amar a lei, amar a polícia, amar a presidência, venerar o voto. Simultaneamente, a universidade trabalha para desmerecer o autogoverno, a igualdade, a liberdade, a apropriação pelos trabalhadores daquilo que produzem, o abolicionismo penal e prisional. A universidade pratica a estadolatria continuamente.
Parar colocar textos de negros, indígenas e de anarquistas é uma luta. Uma luta contra o triplo epistemicídio.
[1] Transcrição por Cello Latini da live no facebook da Associação de Docentes do Cefet do Rio de Janeiro, com o Professor Wallace de Moraes. Disponível em: http://adcefetrj.org.br/adcefetrj/2020/06/16/quintas-live-racismo-e-genocidio-do-povo-negro-como-construir-uma-saida/[2] Eu não gosto de usar termo milícia, criado por um jornalista da Globo, que o utilizou porque, na manchete, não cabia o termo “para-militar”. Na verdade, milícia tem uma origem popular e significa a autodefesa do povo contra os ataques do Estado e dos capitalistas. O melhor termo que podemos usar para designar o controle de territórios por homens ligados ao militarismo oficial é para-militarismo, pois sua maioria é militar e, quando não são, possuem apoio e a anuência de militares e do Estado. No fundo e ao cabo, usando o termo milícia para isso apagamos o histórico de autodefesa popular contra os ataques do Estado, do capitalismo e por aí vai.