Aula dia 21 de setembro de 2020.[1]
Autor: Wallace de Moraes
Edição/transcrição: Cello Latini
O que quero discutir com vocês são as bases do pensamento liberal escravista. Os considerados “grandes teóricos” justificavam o processo de escravização de negros e indígenas ou sequer tocavam nesse assunto, o que significa que concordavam com esse processo. Afinal de contas, “quem cala consente”. Quais são os princípios desse pensamento moderno? Propriedade privada, divisão social do trabalho, capitalismo, colonialismo, patriarcado branco e Estado. São todos estadolátricos, nenhum faz crítica ao Estado. Por isso, uso o conceito de Estadolatria, e obviamente estou aqui numa perspectiva indígena, negra e anarquista. São autores que veneram a Lei, veneradores da Prisão, do militarismo e de formas de governo, justificando a dicotomia governante-governado. Todos esses processos trazem o seu congênere, que são a desigualdade, o lucro, a riqueza em meio a uma enorme miséria, o preconceito, a subordinação, a exploração e o racismo. Esse processo ocorreu dentro de uma perspectiva patriarcal. Eu gosto muito do conceito que Grosfoguel utiliza de racismo epistêmico e sexismo epistêmico, que denota, em outras palavras, um racismo e o patriarcado branco. E também não é de qualquer branco, mas do branco governante econômico, político, sociocultural, político, e por aí vai.
O Estado representa a essência da razão, para Hegel; garantia da longevidade e da segurança, para Hobbes (e para todos os pensadores liberais); sustentador da estabilidade política, para Maquiavel (que escreve em um contexto de ampla instabilidade política, em que um rei e seus descendentes matavam-se uns aos outros para tomar o poder); com instituições delimitadas, para Montesquieu; garantidor da propriedade privada, para Locke; e do livre mercado, para Adam Smith. O Estado tem todos esses papéis, no pensamento moderno. Nenhum deles fala que o papel do Estado era matar negros e indígenas. Esse aspecto eles não trataram, porque não interessava, podia morrer, era considerado subumano mesmo, era como se fosse um animal, um burro de carga.
Quando se aprende sem contextualizar isso, sem dizer que esses autores justificam a escravidão, eu não diria que você está sendo enganado, mas que você não está entendendo o processo como um todo. O que deveríamos fazer é mostrar que esses autores são racistas, são colonialistas, foram responsáveis pelo assassinato, pela escravidão e pela matança de gerações inteiras. Matar gerações inteiras e escravizar gerações inteiras gerou um problema para os descendentes daquelas gerações escravizadas, e é por isso que, hoje, negros e indígenas ocupam os piores empregos, os subempregos, ocupam as piores moradias, não têm perspectiva de vida digna. Esse pensamento moderno, em resumo, consubstancia-se na garantia da propriedade privada, na estadolatria, na estabilidade política (para os governantes), na desigualdade, no racismo e no patriarcado branco.
Não dá para colocar somente patriarcado, porque as mulheres brancas ocupam, hoje, em sua ampla maioria, situação melhor do que a dos homens negros. Olhem para nossas universidades. Vejam quantas professoras brancas existem e quantos professores negros existem. Há ainda menos professoras negras. Isso é pleno racismo. Por isso chamo de patriarcado branco.
F. Hayek, Robert Dahl, Antony Downs, MancurOlson, John Rawls, Robert Nozick, Milton Friedman, Fukuyama: são autores do século XX, liberais, signatários daquilo que Locke, Adam Smith e outros propuseram. São estes que defendem uma democracia minimalista, que exclui efetivamente a participação do povo, são esses que defendem o Estado mínimo, ou seja, um Estado que não garante os direitos sociais, trabalhistas, que não garante o direito à moradia, à previdência social. Quando eles falam de Estado “mínimo”, se referem a um Estado que garanta somente a propriedade privada, que expressa garantir a segurança, a ordem. Mas o Estado mínimo é um Estado máximo militarista e penal. É mínimo para o social, mas máximo para a segurança, para a repressão, que continua, nas Américas, exterminando e aprisionando negros e indígenas.
Seus legados são: capitalismo, Estado mínimo, Liberalismo e “Democracia”. Democracia, que eu chamo de Plutocracia, em meus três últimos livros. Plutocracia (pluto = ricos, cracia = governo) significa o governo dos ricos, ou o governo em favor dos ricos, o governo em favor dos proprietários, em favor de quem tem dinheiro, dos capitalistas.
Huntington, Lipset e Schumpeter, em seu conjunto, defendem que quanto menor a participação popular nas eleições, melhor o sistema. Ou seja, eles não querem nem a participação popular. É quase como dizer que são contra o voto universal.
A epistemologia moderna é racista, patriarcal, capitalista e estadolátrica. Esse é o grande resumo desse conjunto de aulas sobre as epistemologias modernas. Porque, a partir daqui, podemos pensar na filosofia, na epistemologia decolonial e libertária, negra a indígena.
A modernidade, colonialidade e colonialismo estão baseados no racismo, no patriarcalismo, no capitalismo e na Estadolatria. A ideia de raça é criada pela modernidade. O racismo atravessa todas as opressões. O patriarcalismo também, e entendo o patriarcado como algo bem mais amplo, que inclui a cisnormatividade, heteronormatividade e LGBTQIAfobia. Então, o patriarcalismo não é só o poder do homem, mas o poder de um certo tipo de homem, que é branco.
O capitalismo é aquela relação econômica/social em que vivemos baseada na compra e venda da força de trabalho, que foi construída a partir da expulsão do campesinato do campo na Europa e da conquista da África, das Américas e da Ásia. Esse foi o processo capitalista, fundado simultaneamente com a Modernidade, e que estabeleceu a ideia de colonialismo e de colonialidade do poder, permanecendo até os nossos dias.
A Estadolatria significa uma idolatria do Estado, em que não se consegue pensar para além dessa instituição, é uma camisa de força desse pensamento moderno. Mas eles estão com essa camisa de força não por obrigação, mas por opção, pois é justamente o Estado que garante a desigualdade, que garantiu o colonialismo, que impôs racismo, que matou negros e indígenas. Então, polícia, prisão, tortura, açoite, são instituições estatais, colonialistas, para atentar, sobretudo, contra os “subumanos”. Quando se prende o outro, implica em tratá-lo como subumano. É necessário pensar nesses termos.
Privilegiamos, hoje, o pensamento liberal, mas não só, tratamos de Hobbes, Hegel, Montesquieu, Tocqueville e companhia. Esse modelo moderno foi estipulado a partir da conquista das Américas, da criação da ideia de raça, da criação da ideia do outro enquanto negro, enquanto indígena, de tratar o outro enquanto uma raça diferente, preto e indígena, e os brancos europeus se trataram como superiores/conquistadores. Depuis-Déri propõe chamá-los de bege, porque “branco” passaria uma noção de limpeza, pureza, que não ocorre nesses governantes que tanto escravizaram negros e indígenas. Temos inclusive um texto de Depuis-Déri que está traduzido em nossa Revista Estudos Libertários, que traduzi com Isabella, sobre ágora-fobia e ágora-filia política.
Nós temos um Estado hobbesiano, hegeliano, lockeano, ou seja, é um Estado autoritário, que se propõe como essência da razão, e que mata e prende negros e indígenas e seus descendentes. Essa é a modernidade, que impôs um regime capitalista, patriarcal, racista, excludente e desigual, como nós vivemos hoje, em todos os lugares da América Latina, do mundo ocidental e da África também. Quem sabe um dia a gente consiga estabelecer uma sociedade anti-moderna, que significa uma sociedade do amor ao próximo, da igualdade, da liberdade, de não-tutela, não estadolátrica, abolicionista penal, uma sociedade livre, tal como aprendemos com os indígenas, com os africanos e com os anarquistas. “Allthe Power tothe People! Todo o poder ao povo!”, como diziam os Panteras Negras.
Referências
DE MORAES, Wallace S. História das plutocracias no Brasil. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2019.
__________________. Governados por quem? Diferentes plutocracias nas histórias políticas de Brasil e Venezuela. Curitiba: Prismas, 2018.
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[1]Edição/transcrição de Cello Latini da vídeo/aula do professor Wallace de Moraes no canal do CPDEL no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=IBnp_xQapQ0