Aula de 15 de setembro 2020
Autor: Wallace de Moraes
Edição/transcrição: Cello Latini
A bell hooks só conseguiu escrever suas teses com maestria porque tem uma experiência, enquanto corpo negro, de quem sofreu discriminação ao longo de sua história, e conseguiu materializar e identificar a forma de supremacia branca existente na sociedade. Ela trouxe alguns argumentos muitíssimo interessantes sobre o cinema estadunidense – que, aliás, não é estadunidense, é o cinema mundial hollywoodiano que nós consumimos aqui no Brasil também – e a televisão. Daí, ela falou da escola e da universidade.
A bell hooks conseguiu construir isso de uma maneira muito exemplar, e, além disso, ainda é mulher, ou é reconhecida como mulher, já que estamos descolonizando tudo.
Sua escrita é transgressão pura, do início ao fim, desde seu nome, da adoção do nome da bisavó, que tinha origem indígena e africana, até o uso de seu próprio nome em letras minúsculas. É de uma extrema coragem. Isso denota a ousadia dessa pessoa, desse corpo, em enfrentar esses diversos paradigmas ocidentalizados. Esses paradigmas geram problemas, problemas de transgressão para uma construção do saber que é autoritário e que só apresenta quase que uma única via: a europeia.
CONSTRUÇÃO DE UM IMAGINÁRIO RACISTA
A grande questão que bell hooks traz é: como ocorre esta criação da imagem de negros e indígenas na sociedade? O que ela analisa nos Estados Unidos faz todo sentido para pensarmos aqui no Brasil. Qual imagem se constrói do negro? Qual o reflexo dessa imagem para a criança negra? Para a criança que está no primário, que só tem professores brancos, que no máximo vê as merendeiras (sem nenhum desmerecimento do papel de merendeiras), que são subalternizadas dentro da escola, enquanto negras, mas os professores, diretores etc são brancos? Isso tudo é uma construção de imagem. A criança vai para casa e assiste à novela onde os brancos são os ricos bem-sucedidos e os negros são subalternizados, quando não são bandidos. Trata-se do reforço de um estereótipo depreciativo. Ainda que se afirme que a realidade é caracterizada pela subalternização do negro e que, portanto, deve ser retratada dessa maneira, precisamos entender e salientar que essa realidade tem um histórico, uma construção. Ao percebermos como isso foi construído, não temos como não fazer a crítica sobre como essa sociedade está fundada na ideia de racismo.
A mídia também busca se valer e se apropriar de determinados discursos e pautas negras para se passar por democrática quando, na verdade, como se dizia nos protestos em 2013, “a verdade é dura, a rede globo apoiou a ditadura… e ainda apóia”. Do ponto de vista histórico, essa grande mídia fez parte das governanças institucionais socioculturais que reforçaram e serviram como principal combustível da consolidação do racismo no Brasil.
Nas novelas, os negros trabalham como empregados domésticos, motoristas particulares, ou seja, são sempre subalternizados. Depois de muita pressão, em uma ou outra novela um negro foi protagonista, mas é raro. Isso tem um resultado no imaginário das crianças que é o que mais me dói, que mais me chama atenção. Há um padrão de beleza e de moda que é instituído pela televisão, pelo cinema e, efetivamente, pelo dinheiro, pela compra dos produtos. Por isso, uma crítica antirracista que se limite à questão de raça é muito pequena. Uma crítica antirracista deve ser muito mais ampla, deve englobar uma crítica ao capitalismo, ao dinheiro, à exploração, ao patriarcado, a todas as opressões.
REPRESENTAÇÃO EM BELL HOOKS
Em minha graduação, no IFCS, eu não me lembro de ter participar de um debate como esse. Quero partir do princípio de que vocês devem falar, devem botar pra fora, suas experiências valem muito. Não devemos reproduzir o que a perspectiva ocidentalizada nos impõe. Não estamos discutindo sobre partidos políticos e governos. Estamos fazendo uma discussão muito mais ampla e profunda que vai às raízes dos problemas que são estabelecidos em nossa sociedade, independentemente dos governos. Quando conseguiremos sair dessa perspectiva ocidentalizada e ir às raízes dos problemas? Ir às raízes dos problemas está, em grande medida, ligado à questão da representação.
Não basta haver representações, não basta haver cotas. Não basta ter um jornalista negro apresentando o Jornal Nacional, ou um presidente negro, como nos Estados Unidos, talvez o país mais racista do mundo. Não basta isso. Essas representações não libertam a maioria de negros, negras, negres e indígenas nesse país e nem na América Latina. Não bastou ter um indígena, como Evo Morales, presidente da Bolívia. Não bastou ter um mestiço, como Hugo Chávez, presidente da Venezuela. É muito mais profundo que isso. Nós somos moldados a pensar dentro de caixinhas. O que desejo propor a vocês é que ampliemos esse horizonte de reflexão e vamos muito mais profundamente à raiz dos problemas. Voltando ao ponto de bell hooks: as representações não bastam. Hoje, é muito legal ver, perceber e saber que há alunos negros e indígenas nas universidades brasileiras em função das cotas. Mas se compararmos com o número de negros e indígenas que estão fora da universidade… Esse é o grande desafio.
Aqui, se formam as elites. Mas como fazer essas elites sem esquecer as suas origens, os seus ancestrais, de onde viemos? Estou falando para negros, indígenas e brancos também, pobres. Esse é o grande desafio. Não basta haver representação, como jornalistas, ou um professor negro na universidade. A grande questão é: quando os negros e indígenas vão se autogovernar? Quando todos nós vamos nos autogovernar sem termos que obedecer a alguém, criando nossas próprias regras?
Interessa aos governantes, de modo geral, que haja negros, negras e indígenas que ocupem esses espaços de governança ou de poder e que, ao ocuparem esses espaços, reforcem o discurso da branquitude racista, nos seguintes termos: se estou aqui, qualquer um pode chegar. Isso não é verdade. Não há espaço para todos. Vivemos em uma sociedade que produz um funil proposital para garantir que apenas uma elite consiga usufruir de toda a produção intelectual, econômica, política que ocorre no seio da sociedade. A melhor coisa para esses setores é colocar um negro que diga “estou aqui, se organize, difunda dinheiro, criem economia entre os negros e vocês vão se salvar”. Veja, esse negro está reforçando o capitalismo, que foi criado através da exploração dos negros, do colonialismo. Por isso, é importante haver decolonialidade, que não está na pauta da literatura ocidentalizada, nem da literatura ocidentalizada crítica do capitalismo. Estou falando muito claramente do marxismo. Marx falou da acumulação primitiva do capital, mas não falou que essa acumulação acontecia principalmente sob exploração intensa do trabalho escravizado de negros nas Américas, na África, de indígenas e etc.
COMO O ANARQUISMO CONTRIBUI PARA A DECOLONIALIDADE
Existem diversas maneiras de ser decolonial. Você pode ser um decolonial que coloca a questão de raça como fundante de um processo civilizacional, mas, ao mesmo tempo, pode acreditar e pensar em uma organização estatal, em que o Estado resolveria os problemas coletivos e individuais. Ao fazer isso, você ignora por completo o papel histórico exercido pelo Estado em todas as sociedades. Por isso, minha perspectiva busca utilizar a decolonialidade, que fornece a noção de que o racismo corta toda a organização societal e, portanto, é uma crítica a essa supremacia branca, à branquitude, como bell hooks chamou.
Do ponto de vista das teorias e filosofias políticas, a única que defende o autogoverno social é a anarquista. Nenhuma outra faz isso. Todas as outras – os liberais, aristocratas, conservadores, etc. – acreditam que deve haver governo. Apesar de os marxistas afirmarem que é possível um comunismo, antes deve haver um governo do proletariado. Sempre há necessidade de governo. E governo sempre é autoridade de uns poucos sobre muitos. Governo é sempre uma autoridade. Se queremos a libertação dos corpos, não só dos corpos negros e indígenas, mas também em defesa de liberdades sexuais, de liberdade de afirmação, das mais diversas, a perspectiva que contribui para isso é a anarquista, por estar pautada na ideia de liberdade. Liberdade total casada com autogoverno.
Hoje, em diversos países africanos, temos governos negros, com negros no comando de vários Estados africanos, o que não necessariamente leva à libertação de outros negros que são explorados, governados e discriminados por serem pobres ou pertencentes a outras etnias.
Por isso, acho que deve haver um casamento entre essas perspectivas, entre a perspectiva absolutamente crítica do racismo – que só pode ser feita ao reconhecermos sua existência – e a perspectiva de defesa da liberdade. Defender a libertação do outro, lutar pela libertação de outro grupo oprimido é um combustível pela luta por sua própria libertação. Não é uma luta individual. Para uma luta antirracista ser potente, deve haver uma luta contra a LGBTQIAfobia, a pobreza, a exploração, contra o capitalismo, o patriarcado, todas as formas de subjugação e discriminação.
Tenho até um texto, sobre as governanças sociais e institucionais, no qual apresento diversos tipos de opressões que perpassam nossa sociedade.[1] Uma libertação de todas essas opressões, a meu ver, deve passar pelo reconhecimento da luta de todas elas em seu conjunto. Se for uma luta interna, só contra a opressão que lhe afringe, sem pensar na opressão que o outro sofre, estará guiada pelo princípio do individualismo liberal capitalista e pelo nacionalismo. É a soma de todas as lutas identitárias com apoio mútuo entre elas que levará a uma libertação e construção de algo novo, guiado pela ideia de autogoverno, de emancipação, em que se garantirá liberdade com igualdade, respeito, e por aí vai.
A bell hooks colabora nesse sentido. Ela está no caminho de uma luta antirracista, mas não somente, pois reconhece que existem outras lutas que devem ser associadas e valorizadas.
O processo de descolonização é um caminho em que você entra em espiral e vai aprofundando a crítica ao racismo em uma crítica ao patriarcado branco, ao capitalismo, abaixo a cisnormatividade, a todo tipo de domínio! É um processo muito mais profundo. É um longo caminho de desconstrução de toda essa modernidade e colonialidade do poder.
Nessa perspectiva moderna colonialista, os corpos negros são meros reprodutores de força de trabalho, executores de trabalho para as elites brancas governantes.
AS DUAS IDEIAS QUE ESTRUTURAM O SABER OCIDENTALIZADO: O UNIVERSALISMO E A NEUTRALIDADE AXIOLÓGICA.
O que estrutura o saber ocidentalizado são duas ideias: o universalismo e a neutralidade axiológica. Desde essa perspectiva, nunca podemos falar a partir de nossas experiências. Devemos sempre referendar um saber construído na Europa Ocidental ou nos Estados Unidos. Para combater essa visão, iniciei nossas aulas com o texto do Grosfoguel, pois ele faz uma crítica profunda sobre como todo saber é situado historicamente e como a produção do saber na Europa é provinciana e busca se apresentar como universal.
Quando supomos que a neutralidade e a imparcialidade são necessárias à produção acadêmica, excluímos todo o saber externo à universidade. É isto que constitui o epistemicídio. A exclusão de todo saber externo está pautada no racismo epistêmico, no sexismo branco, na estadolatria, ou seja, no amor a autoridades. Trata-se de uma maneira de não se ampliar a crítica e os horizontes, amarrando-se a uma perspectiva na qual, usando uma metáfora do futebol, é como se você estivesse jogando sempre no campo do adversário com o estádio lotado e com o juiz do adversário. Ou seja, a imparcialidade significa que você nega a voz do outro, e o outro, é sempre o mesmo, é o negro, indígena, pobre, participante do movimento social. Nega-se o saber do outro sem sequer lhe dar voz, pois dizem a ele “a sua voz é parcial, a minha é imparcial”. Negam, tiram, impedem que o diferente se utilize de uma teoria, sem sequer lhe dar voz.
Referências
DE MORAES, Wallace. (2018) Estadolatria, plutocracias, governanças sociais e institucionais – preâmbulo de um paradigma anarquista de análise. Disponível em: https://otal.ifcs.ufrj.br/estadolatria-plutocracias-governancas-sociais-e-institucionais-preambulo-de-um-paradigma-anarquista-de-analise1/
GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril 2016.
HOOKS, Bell (2019). Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante.
[1]Ver De Moraes (2018) disponível em: https://otal.ifcs.ufrj.br/estadolatria-plutocracias-governancas-sociais-e-institucionais-preambulo-de-um-paradigma-anarquista-de-analise1/