Por Wallace de Moraes
Texto publicado no Le Monde Diplomatique. Link de acesso: Em defesa dos Moïses – Le Monde Diplomatique Brasil – Acervo Online
No dia 24 de janeiro, o jovem congolês Moïse Kabagambe foi amarrado com fios e espancado até a morte na Barra da Tijuca. Sua culpa: ter reclamado por seu pagamento atrasado. Ademais, ele recebia menos que os outros trabalhadores pelo mesmo trabalho. Uma semana depois um Moïse brasileiro de nome Durval foi assassinado em frente à sua casa por ter sido confundido com um “ladrão”, disse o assassino. Ambos assassinatos foram filmados. Antes, os africanos iam para o tronco e eram açoitados por não terem aceito sua condição de escravo, muitos assim morriam. A permanência da violência contra africanos e seus descendentes e a invisibilidade dos desempregados, dos subempregados, dos pobres e miseráveis constitui-se uma das piores faces da racismo e comprova que os princípios do colonialismo ainda permanecem em nossas sociedades. Se os assassinatos de Moïse e de Durval não são a comprovação de racismo e da persistência da colonialidade, não sei mais como explicar absurda desigualdade de tratamento.
Por um acaso, as mortes do congolês e de Durval foram filmadas. Mas é importante saber que em 2019 foram assassinados 31.988 homens negros. Os dados demonstram que as mortes de outros “Moïses” que ocorreram em favelas, periferias e florestas estão cada vez mais naturalizadas justamente onde não existem registros de filmagem.
Em 2021, 1.636 pessoas foram resgatadas de condições semelhantes à de escravidão. Quantas dessas já foram assassinadas por reclamar algum pagamento pelos seus serviços? A prática de matar o “rebelde”, isto é, aquele que não aceita a sua condição de exploração é comum desde o Brasil colônia. Mas também se mata negros que aceitam a condição de subemprego, simplesmente por serem negros e parecerem ameaçadores. Fanon explica esse fenômeno como parte do narcisismo branco colonialista.
O trabalho escravo ou análogo à escravidão encontra terreno fértil em conjuntura específica. O Brasil possui, hoje, segundo o IBGE, em torno de 12,4 milhões de pessoas em busca de trabalho e 4,9 milhões que desistiram de procurar emprego porque não têm esperança de obter êxito. Não estão computados aqueles que trabalham por biscate, comércio ambulante, os subempregados e, absolutamente, mal remunerados que ultrapassam 40% da população ocupada, ainda na informalidade, isto é, sem garantias de direitos, como Moïse e Durval. Como resultado, cerca de 12 milhões de pessoas vivem em situação de extrema pobreza e mais de 50 milhões em situação de pobreza, ou seja, um em cada quatro brasileiros vive com menos de R$ 450 por mês.
No âmbito da fria economia, essas pessoas são tratadas meramente como números. Mas elas possuem nome, sobrenome e sentimentos. São milhões de Moïses. Quero convidá-lo a pensar: 1) nas mães que perdem seus filhos por motivos torpes, sabendo que foram assassinados porque são pobres, negros e/ou indígenas; 2) nas mães e nos pais que ficam com baixa autoestima e sérios problemas psicológicos ao não poder pagar um aluguel, uma conta de luz, comprar gás de cozinha, não conseguem abastecer a casa com comida e quando reclamam por salários são achincalhados, humilhados, assassinados; 3) nos filhos que perdem seus pais por motivos racistas.
Por que os problemas do racismo e do desemprego não estão na ordem do dia? Aqui entra a nossa hipótese decolonial e libertária: as pessoas alvos do desemprego são consideradas sub-humanas. Em sua maioria são negras, indígenas e tratadas como burros de carga. Sabemos que a escravidão foi justificada porque africanos foram considerados como não humanos e indígenas foram reconhecidos como humanos só depois do julgamento de Valladolid em 1551, mesmo assim a ampla maioria dos colonizadores não respeitou a sentença.
Na lógica colonialista, matar e deixar morrer negros, indígenas e pobres é normal, continuamos sendo tratados como não humanos. O Brasil deve assumir o mais rápido possível uma postura antirracista em todos os seus espaços e isso passa por um sistema econômico que não produza o desempregado nem o subempregado. Não podemos naturalizar nem as mortes diárias divulgadas, nem as não veiculadas pela grande mídia. Queremos justiça por Moïse e Durval, mas devemos criar mecanismos urgentes para que outros Moïses não sejam assassinados em todos os sentidos da vida! É necessário nos organizarmos, ocupar as ruas e mostrar nossas vozes e ações diretas. Todos ao ato de sábado na Barra da Tijuca e que venham outras manifestações por todos os Moïses!
Wallace de Moraes é professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ. Membro do Quilombo do IFCS/UFRJ e líder do grupo de Pesquisa CPDEL (Coletivo de Pesquisas Decoloniais e Libertárias). Canal no Youtube: https://www.youtube.com/channel/UCI6ALgmE_efoCONkrPmQ9fw.