CRÍTICA À ESTADOLATRIA: CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA ANARQUISTA À PERSPECTIVA DECOLONIAL

CRÍTICA À ESTADOLATRIA: CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA ANARQUISTA À PERSPECTIVA DECOLONIAL

Live dia 01 de fevereiro 2021

Edição/transcrição: Cello Latini

Autor: Wallace de Moraes

Essa aula parte de um artigo de minha autoria, publicado na Revista Teoliterária. Nossos objetivos são apresentar alguns conceitos da filosofia anarquista que podem ser úteis para a perspectiva decolonial no sentido de sua luta por descolonizar o poder, o saber e o ser. Trata-se de uma filosofia que, embora tenha raízes na própria Europa, foi desenvolvida sob racismo europeu e ampliada em outros continentes. Seu mérito não é estar pautada nem pela ideia da razão supostamente superior eurocêntrica, nem pelas ideias dualistas, cristãs, estadolátricas, modernas, colonialistas, capitalistas. Mostrarei como os conceitos da filosofia anarquista podem ser úteis para uma luta decolonial, antirracista, de libertação dos povos negros e indígenas subordinados em nossa sociedade racista, capitalista, moderna, caracterizada pela colonialidade do poder.

Assim, acreditamos na possibilidade de apontar algumas contribuições para os propósitos de libertação popular, o que também é objetivo da filosofia decolonial. Evidentemente, para tanto, precisaremos não estar carregados de um preconceito determinista geográfico, nem racial, segundo o qual tudo que for compartilhado por europeus deve ser rejeitado. Entendemos a escravização de negros e indígenas, que ocorre há mais de 500 anos nas Américas, como uma empreitada, realizada pelo militarismo e justificada pelo igrejismo, determinada por governantes brancos europeus. Obviamente, negros e indígenas apresentam grande objeção a esses tipos de controle, matança, assassinado, perseguição, etc. Mas nem todo branco foi responsável por isso. Trabalhadores brancos, na Europa, excluídos, explorados e subordinados não podem ser responsabilizados pelo que os Estados modernos europeus realizaram nas Américas. Por isso, não podemos ter determinismo geográfico, nem de raça, até porque a própria ideia de raça foi uma criação histórica do Estado moderno europeu. O que efetivamente realizou essa forma de exploração e extermínio de negros e indígenas foi o Estado moderno europeu.

Não somente a filosofia decolonial deve aprender com o anarquismo, mas a filosofia anarquista também deve aprender com a perspectiva decolonial. Dentre os ensinamentos, temos o entendimento de que a modernidade e sua economia política possuem como eixo central, organizador, o racismo. Isso não está posto na teoria clássica anarquista.

Podemos e devemos incluir a interseccionalidade. Esse conceito foi criado por feministas negras, principalmente nos Estados Unidos, e representa a ideia de que mulheres negras não são só exploradas e excluídas por sua cor da pele, como também por um ponto de vista de classe. Classe e raça são pontos centrais de opressão com relação a mulheres negras, em um tom agressivo muito maior do que ocorre com mulheres brancas. A filosofia anarquista deve ampliar seus horizontes para outras formas de opressão, como a opressão patriarcal, heteronormativa, cisnormativa, etc.

Devemos aprender as cosmogonia dos povos não europeus e respeitar suas crenças e culturas. A filosofia anarquista deve compreender quando um indígena reconhece que uma montanha, um rio, os elementos da natureza fazem parte de sua família. Não obstante, os postulados centrais da epistemologia anarquista compõem um terreno absolutamente fértil para esse aprendizado, pois seus princípios lhes possibilitam aprender com a teoria da colonialidade sem nenhum trauma. O anarquismo não é uma ciência acabada, fechada. Devemos compreendê-lo sempre em construção, ao contrário do marxismo. A filosofia anarquista deve sempre ser compreendida em relação a seu contexto histórico, sua localização geográfica, seu cenário político. Não se pode abrir mão dos princípios fundamentais, de defesa da liberdade e da igualdade. A liberdade só é concretizada na igualdade. Se povos negros e indígenas foram, a partir do colonialismo, capturados, escravizados, assassinados, não há conceito mais importante para negros e indígenas do que liberdade. Por isso, a teoria anarquista deve contribuir para a emancipação de povos negros e indígenas. Obviamente, essa liberdade é diferente da liberdade defendida pelo liberalismo. A liberdade do liberalismo é de mercado, para os donos dos meios de produção. Não há liberdade para o trabalhador, para negros e indígenas.

Compreende-se facilmente porque é que aos historiadores modernos, educados no espírito das coisas romanas e empenhados em fazer derivar todas as instituições de Roma, lhes seja muito difícil abarcar o verdadeiro sentido do movimento comunalista do século XII. Afirmação vital do indivíduo que consegue constituir a sociedade pela livre federação dos homens, das aldeias, das povoações e das cidades, este movimento é uma negação absoluta do espírito unitário e centralizador romano, mediante o qual se pretende explicar a história nas nossas universidades. É que este movimento não anda ligado a nenhuma personalidade histórica, a nenhuma instituição centralizada. É um desenvolvimento natural, pertencendo, como a tribo e como a comuna rural, a uma determinada fase da evolução humana, e não a tal ou qual nação ou região. (KROPOTKIN, 2000, p. 98)


Aqui, Kropotkin faz uma crítica profunda à perspectiva moderna, colonialista, unitária e centralizadora, que desmereceu todos os princípios do comunalismo europeu. Essa forma centralizadora foi herdada do Império Romano, uma estrutura governamental, hierárquica, autoritária, militarismo e igrejista, que dá as bases de formação do Estado moderno e da modernidade como um todo, caracterizada pelo triplo epistemicídio. Nossos alunos não têm acesso a autores e autoras negras, indígenas, anarquistas; mas têm acesso aos autores liberais, marxistas, social-democratas, nacional-desenvolvimentista. Os pensamentos negro autônomo, indígena autônomo e anarquista são considerados inferiores, sofrem da colonialidade do saber. Essa colonialidade do saber significa que aprendemos, em nossas escolas e universidades, que apenas o conhecimento produzido por europeus estadolátricos é digno de ser estudado, recebe o status de “clássicos”.

Embora tenham diferentes concepções sobre a organização do Estado, esses autores não abandonam a concepção de Estado. O Estado é a organização do poder, da economia, da sociedade. Estado é hierarquia, autoridade, poder. Para o governante branco, isso faz todo sentido. Mas para negros e indígenas, o que o Estado significa? Percebam a separação entre o pensamento negro e indígena e o pensamento branco estadolátrico. Para este último, o Estado significa segurança, garantia de sua propriedade, de sua produção de riquezas, e garantia de que os oprimidos não conseguirão reverter o processo de exploração. O Estado é visto como uma entidade que jamais poderia ser descartada. Já para o negro, o Estado representa opressão, prisão, assassinato.


EPISTEMICÍDIO

Proposto por Boaventura de Souza Santos (2011), o “epistemicídio” une duas palavras: episteme e homicídio, ou seja, o assassinato de teorias populares, que não estão inclusas na academia. Eu procuro ampliar esse conceito para além das universidades. Não somente os saberes populares são excluídos, como também os saberes negros, indígenas e anarquistas. A partir disso, são enumerados três eventos nos quais se torna possível observar empiricamente o epistemicídio, que Santos repudia, mas que continua sendo defendido pela Academia ocidentalizada, a saber: 1) valorização de toda produção acadêmica realizada por europeus e estadunidentes, que em suma são homens brancos, heterossexuais, cristãos, proprietários, com ligação ao governo; 2) invisibilidade das produções realizadas por movimentos sociais autônomos, sobretudo aqueles que são compostos por negros e indígenas; 3) desvalorização e invisibilização da produção acadêmica voltada à crítica da ordem estadolátrica e do sistema capitalista que compõe a sociedade moderna ocidental.

A colonialidade do saber (MALDONADO-TORRES, 2018) é útil para analisarmos de que modo o arcabouço teórico-epistemológico produzido pelo Ocidente e pelos países ocidentalizados são reprodutores e perpetuadores do pensamento e de práticas herdados do regime colonial. Enquanto estudante, me ensinaram que eu deveria procurar autores europeus como referências, para dar mais força às minhas teses. Isso é colonialidade do saber.


NECRO-RACISTA-ESTADO

Os necro-racista-Estados modernos, enquanto filhos legítimos do Estado moderno europeu, nas Américas foram construídos sobre sangue, suor e lágrimas de indígenas e negros. É isso que nos faz compreender como ainda hoje o Estado continua matando negros e indígenas, quando, por exemplo, durante uma pandemia, pede-se que as pessoas fiquem em casa, mas elas não têm como ganhar pão. Essa morte também é psicológica, da exclusão, da humilhação.

A estadolatria é criminosa. Ela é muito valiosa para governantes brancos, mas para negros e indígenas ela é criminosa.

Todas as teorias que se enquadram no princípio geral de conceber as instituições estatais como resultado do progresso e/ou da razão são aceitas. Liberalismo, social-democracia, marxismo, conservadorismo e fascismo, por exemplo, em que pese suas profundas diferenças, concordam em torno da existência do Estado e consequentemente da dicotomia entre governantes e governados. Pode-se pensar em diversas formas de exercício do poder estatal, mas jamais na sua imediata e completa negação. São os fantasmas hobbesiano-hegelianos impondo suas assombrações. (DE MORAES, 2020)


O que é estadolatria? É a idolatria do Estado, exercida em todas as nossas universidades. Não podemos pensar para além do Estado. Diferentes teorias, do fascismo e nazismo até o marxismo, não conseguem pensar para além do Estado. Somente após muitas críticas de anarquistas, e principalmente após a Comuna de Paris, quando os comunardos parisienses não criaram um novo Estado, Marx mudou de ideia e passou a defender o fim do Estado após a ditadura do proletariado – que nada mais é a vanguarda do partido marxista chegando ao poder, e governando todos os demais de cima para baixo. A dicotomia governantes/governados está presente no marxismo. A liberdade está ausente nesse processo. Há diferentes formas de justificar o Estado: Hegel o compreende como representante da razão; Hobbes, como fiador da vida; Locke, como garantia da propriedade privada; Marx, como instrumento para se chegar ao comunismo – a estadolatria de Marx é diferente da de Hobbes; mas, quando se entende que, por meio do Estado, poderiam ser exercidas as transformações sociais, e que tudo deve ser estatizado, isso corrobora para a afirmação de que Marx é estadolátrico. Mas nenhum consegue conceber uma sociedade com imediato fim do Estado, da opressão.

A estadolatria é quase que um consenso entre todas as teorias da necessidade de haver Estado. A única que foge a isso é a teoria anarquista. Em consequência, no pensamento indígena, há uma profunda crítica ao Estado. Há um encontro entre filosofias indígenas e anarquistas, com relação à crítica ao Estado. Quando falo de estadolatria, meu aporte teórico se fundamenta em anarquismo, filosofia negra, pelo comunalismo africano, e filosofia indígena, a partir de sua própria negação do Estado. Obviamente, essa negação não pode ser realizada por governantes brancos europeus nem por liberais.

Em suma, o conceito de estadolatria é uma imposição teórica, militar, igrejista, moderna, segundo a qual é impossível haver autogoverno popular. Esse pensamento de que o povo não é capaz de se autogovernar é reforçado há séculos por filósofos e cientistas políticos das mais diversas correntes. Você precisa ser tutelado, legislado, vigiado, controlado. Sendo assim, a academia ocidentalizada, ao não problematizar essas teorias, continua reproduzindo escritos que legitimaram o racismo, o etnocentrismo, a misoginia, o epistemicídio, a exploração e o extermínio de povos negros e indígenas, entre outras atrocidades. Tudo isso se realizou em nome da idolatria do Estado.

O que garante a permanência do racismo é o Estado. Defender o Estado é defender o racismo. Bakunin nos apresenta uma crítica à desigualdades políticas econômicas sociais, e também à escravidão:

Todo individuo humano é o produto involuntário de um meio natural e social no seio do qual nasceu, desenvolveu e do qual continua a sofrer influência. As três grandes causas de toda imoralidade humana são: a desigualdade tanto política quanto econômica e social; a ignorância que é seu resultado natural e sua consequência necessária: a escravidão (Bakunin, 2006: 110).


Para Bakunin, não há nenhum processo de evolução que o colonialismo pudesse trazer para o colonizado. O suporte central do pensamento anarquista é a liberdade, que não permite nenhum tipo de condescendência com a escravização. Castoriadis é outro teórico, segundo o qual as instituições tentaram ocultar, da humanidade, que a história da humanidade é uma história da auto-instituição. Ele não utilizou o conceito anarquista de ação direta, mas usou o conceito de auto-instituição. Não há uma ideia de progresso, de determinismo.


Nunca existiu e nunca existirá um manual anarquista. Existem experiências de lutas anarquistas. O anarquismo é uma crítica de todo tipo de autoridade, hierarquia, exploração, discriminação. O anarquismo deve se forjar dentro de cada contexto; deve ser debatido pelos que estão na luta. Podemos citar várias lutas, a começar pela Revolução do Haiti, em 1793; a Comuna de Paris, em 1871; a Revolução Mexicana, de 1910 a 1917; a Revolução Espanhola, de 1936 a 1939; a França em maio de 1968 e as rebeliões a partir de 2005; a Grécia desde o fim de 2011; a Argentina com os píqueteros, em 2001; Caracazo em Venezuela, em 1989; a Primavera Árabe, na Turquia, Síria e Egito, em 2011; a Revolta dos Pinguins, no Chile, em 2012; a Revolta dos Governados, no Brasil, em 2013. Podemos citar a luta dos Tupinambás, no Brasil, e das diversas sociedades indígenas que lutaram contra o colonialismo nas Américas.


O QUE É ANARQUIA?

Se todos somos iguais, não há justificativa para que um governe os outros. Essa é uma característica bem peculiar do anarquismo:

Anarquia é um vocábulo formado por duas palavras gregas: an – que significa negação – e arkhé – que significa autoridade. Anarquista expressa negação de toda e qualquer tipo de autoridade, quer seja religiosa, militar, estatal, econômica, social. Por extensão, no sentido político, negação de todo governo, negação do Estado; no sentido econômico, negação de toda hierarquia no local de trabalho, de todo patrão, de todo chefe. (DE MORAES, 2020) 


A filosofia anarquista privilegia o lócus da liberdade, que só pode se concretizar se aplicada em conjunto à igualdade. Não é concebível qualquer justificativa para a escravidão. Por isso, o anarquismo coaduna com a perspectiva decolonial. O anarquismo não tem um teórico ou guia que encarne uma autoridade científica, ao contrário do marxismo. O marxismo vem de Marx, o grande líder, grande pai, grande dogma que deve ser seguido. As ideias libertárias não têm um pai. O primeiro que lutou contra qualquer tipo de exploração e dominação estava imbuído de perspectiva contrária à autoridade que o controlava, ou seja, estava imbuído de princípios anarquistas.

O primeiro ser que lutou contra discriminação, contra a propriedade privada, a exploração compartilhava de princípios anarquistas. Alguns concebem que Jesus Cristo, ao repartir o pão e defender o amor ao próximo, apresentava alguns princípios anarquistas. Outros defendem que o anarquismo se fundou com Bakunin e o coletivismo. Os trabalhadores quando formam o anarcossindicalismo, quando fazem greve e ação direta, quando fazem propaganda pelo fato, quando se organizam horizontalmente sem hierarquias, estão seguindo princípios anarquistas por essência. Não obstante, de maneira sistemática, fato é que diferentes militantes contribuíram para as linhas gerais do pensamento anarquista.

Estamos, aqui, contribuindo para o anarquismo ao uni-lo à decolonialidade. É mais uma contribuição. Nosso anarquismo é decolonial, que reconhece a ideia de raça como organizador da sociedade moderna. Há várias outras contribuições: Maria Lacerda de Moura, que contribui do ponto de vista feminista; Emma Goldman, Lucy Parsons, uma mulher negra anarquista; Cello Latini, que está contribuindo por uma perspectiva crítica da LGBTfobia; vários pesquisadores do CPDEL contribuem com análises anarquistas, seja sobre as ocupações das escolhas, como Guilherme Santana, seja sobre a perspectiva da mulher negra, como Andréa Nascimento, seja sobre relações internacionais, como Juan Magalhães, seja sobre luta antimanicomial, com Denise, sobre os acontecimentos de 2013, com Isadora. Todos esses trabalhos se somam em uma contribuição para construir algo novo com princípios libertários, de auto-organização. Nossos alunos da graduação, como Kaio, Ana Luísa, Júlia Gatto, Pedro Vasconcelos, Morenna, Isabella, Lenilson – que está pensando no campo da História.

Outro foco central da análise anarquista é o estudo do papel exercido por contestadores do sistema, sobretudo se seus objetivos estiverem ligados à ideia de destruição das instituições que sustentam as desigualdades e hierarquias sociais. É importante resgatarmos o papel exercito pelos movimentos sociais autônomos, pelos revolucionários, pelas revoltas contra os opressores, por igualdade, liberdade e sobrevivência. O resgate da memória dos movimentos e/ou dos lutadores do povo – que deve servir pedagogicamente como contraponto à história dos reis, das cortes, dos governantes, dos senhores e dos ricos e poderosos –, realizada pela historiografia oficial, constitui-se como dever epistemológico do anarquista. Mas não só.

Enquanto a historiografia oficial tem como foco as movimentações do poder, os feitos de presidentes, senadores, empresários, o foco anarquista é embaixo; é o papel do corpo negro, do corpo indígena, do trabalhador, do oprimido, da mulher, do LGBT, do sindicalista. É uma inversão total e completa.

De acordo com o pensamento anarquista, existem dois prolegômenos em disputa ao longo da história da humanidade: o da liberdade e o da coerção. O primeiro é amplamente defendido pelos libertários, que podem fazê-lo sem entrar em contradição com suas teses. Em contrapartida, o princípio da coerção é representado pelos defensores do Estado, das hierarquias, do respeito às autoridades, do capitalismo, que significa o governo de uns sobre outros, em uma palavra: a ordem. (DE MORAES, 2020)


Estado representa coerção. Ele nasceu assim.

Contra todas essas perspectivas, os anarquistas são os únicos a defender por inteiro o princípio da liberdade. Todas as outras gabam-se de tornar a humanidade feliz mudando ou suavizando a forma de açoite. Se eles gritam: abaixo a corda de cânhamo da forca, é para substitui- la pelo cordão de seda, aplicado no dorso. Sem açoite, sem coerção, de um modo ou de outro, sem o açoite do salário ou da fome, sem aquele do juiz ou do policial, sem aquele da punição sob uma forma ou outra, eles não podem conceber a sociedade. Só nós ousamos afirmar que punição, polícia, juiz, fome e salário nunca foram, e jamais serão, um elemento de progresso; e se há progresso sob um regime que reconhece esses instrumentos de coerção, esse progresso é conquistado contra esses instrumentos, e não por eles (Kropotkin, 2007, p. 36).

Em suma,

Os amantes do Estado, quando não pregam veementemente a necessidade de coerção estatal para melhor garantir a vida em sociedade, ou mesmo implantar a igualdade, preconizam, em última instância, seus dotes de razão, seja para defesa, supostamente, de toda sociedade, seja para garantir os interesses de uma classe social e/ou da supremacia branca, da colonialidade do poder, do saber e do ser. Em todos esses casos, a liberdade é sacrificada em nome da autoridade, do eurocentrismo, do racismo, da Estadolatria. Em suma, o núcleo duro de todo Estado é a polícia ou alguma força de repressão equivalente. Esse modelo moderno/colonial criado na Europa foi exportado, escravizou outras etnias pelo mundo, e criou a ideia de raça e seu mal inerente: o racismo. O Estado, portanto, foi o principal instrumento do colonialismo e continua com papel preponderante, transformando-se em ativo hegemônico da modernidade/colonialidade do poder. (DE MORAES, 2020).

Considerar que só podemos viver sob a tutela do Estado, é, necessariamente, admitir que somos incapazes de 1) entrar entendimento entre nós; 2) pensar, propor e estabelecer políticas coletivas com vistas ao bem comum; 3) viver em harmonia sem nos matar. Segundo Hobbes, sem Estado nós nos mataríamos uns aos outros cotidianamente, como se o Estado fosse o instrumento para impedir isso – o próprio Estado mata as pessoas dissidentes, desobedientes, insubordinadas.

Em conclusão, 

Em resumo, julgamos que os conceitos Estadolatria, autogoverno e ação direta, muito utilizados pelo pensamento anarquista, podem perfeitamente colaborar para acurar a crítica decolonial e ajudar na libertação de negros, indígenas, explorados e discriminados em geral. Em síntese, o método anarquista baseia-se na ideia de que a ação direta dos governados constitui-se enquanto motor da história, ou seja, é o movimento popular autônomo tomando as ruas, fazendo greves, organizando-se coletivamente, autogerindo-se, que pode fazer as mudanças substantivas para melhoria da qualidade de vida, como um verdadeiro processo de auto-instituição decolonial. Nesse sentido, o nosso diferencial é estabelecer uma teoria das ruas e não uma teoria para as ruas. (DE MORAES, 2020)


Para o anarquismo, os meios determinam os fins, e não o contrário. Seguindo um caminho autoritário, opressivo, os fins serão autoritários e opressivos. Para termos um fim horizontal, anti-autoritário, antirracista, devemos aplicar esses princípios em nosso meio. Portanto, a teoria das ruas parte da própria rua, dos sinais que as ruas emitem, que os movimentos populares protestam. Em 2013, por exemplo, os partidos políticos da esquerda ocidentalizada propuseram pautas sobre 2013. A esquerda ocidentalizada não estava pré-disposta a ouvir as ruas, a ação direta que estava sendo exercida.

O que é ser livre?enquanto um corpo receber ordens de outrem sem que possa haver alguma forma de diálogo, resistência, deliberação ou discussão, o ser humano não será efetivamente livre. Ser livre é não ser ameaçado ao exercer sua liberdade e autonomia. Só se é livre quando se exerce o autogoverno.

Para uma luta antirracista e, portanto, decolonial, a filosofia anarquista tem muito a contribuir. Quando Zumbi dos Palmares e outros negros escravizados fugiram e montaram quilombos, eles não votaram em ninguém, não pediram benção ao Estado; eles exerceram ação direta. Com suas próprias mãos, fugiram do cativeiro, formaram suas organizações sociais em diferentes locais do Brasil e da América, e exerceram sua autogestão. Não formaram outro Estado para oprimir uns aos outros. O Estado foi criado para garantir desigualdade, e o Estado moderno nasceu racista e foi o grande propulsor do capitalismo. O Estado criado nas Américas é descendente do Estado moderno europeu. O capitalismo não se forjou apenas com a exploração do campesinato europeu, mas sim a partir da exploração do trabalho negro nas Américas. A filosofia anarquista coaduna com a perspectiva dos povos negros e indígenas, pelo princípio da liberdade, da igualdade, e por princípios que não colaboram com a exploração, com discriminações, com o patriarcado e com idolatrias ao Estado.

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