TRANSCRIÇÃO CORPO-TERRITÓRIO E EDUCAÇÃO DECOLONIAL
Live do dia 28 de janeiro 2021¹
Edição/transcrição: Cello Latini
PROF. EDU MIRANDA: Na última reunião, ano passado, do CPDEL, nós falamos um pouco sobre essa questão da porteira; como é importante, dentro da universidade, termos territórios de acolhida, os nossos aquilombamentos. Eu vejo que o CPDEL, na UFRJ e, afinal, UEFS – onde eu trabalho, junto com a Marta, somos um corpo-território decolonial – viemos fortalecendo essa perspectiva do aquilombamento, dos corpos distintos, modernizados, e que nossos grupos de pesquisa sempre sejam espaços que, da porteira para dentro, na própria universidade, nos sintamos representados politicamente, nesse processo de desconstrução desse mundo louco, capitalista, racista, homofóbico. Que consigamos estabelecer redes de conforto, redes de diálogos, redes de respeito e acolhidas, porque também precisamos nos amar para resistirmos. Precisamos começar enaltecendo, sim, os nossos territórios, porque a branquitude sabe muito bem enaltecer os territórios deles e delas. No lado de cá, também estabelecermos esse constructo que é político, intelectual e epistemológico de reconhecer os espaços de resistência e de insurgências que também estamos construindo.
Perante isso, quando eu penso que estamos dialogando aqui numa quinta-feira, que viemos escrevendo sobre a decolonialidade afro-brasileira, que é uma decolonialidade que precede o espaço universitário, porque é uma perspectiva que está nas ruas, nas encruzilhadas, nas casas de candomblé, de umbanda, nos terreiros, em toda a diáspora africana, e quando pensamos nessa decolonialidade afro-brasileira não podemos, de forma nenhuma, negligenciar quem é o dono do dia. Na perspectiva de decolonialidade afro-brasileira, o dono do dia hoje é Oxóssi, Okê Arô pai Oxóssi, peço benção, peço que minha fala chegue à casa de vocês como uma fala que provoque, fissure, convide, de alguma forma, desestabilize – se for para termos um bate-papo que deixe todo mundo confortável, melhor nem vir pra cá; a proposta é justamente criar pontos e rupturas de alguns nódulos que nossos corpos estão acostumados a esconder. Precisamos mexer nesses nódulos, porque são nódulos que doem, que estão nos corpos de todo mundo, sobretudo nos corpos subalternizados. Quando penso nesses nódulos, penso em meu próprio corpo-território.
Vim aqui conversar com vocês justamente para apresentar meu livro, fruto de minha tese de doutorado, do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Bahia (UFBA). Perfurei a bolha e consegui o título de doutor em educação. Sempre que olho para esse constructo final, vejo como foi necessário canalizar diversas dores, que me levaram a processos de insurgências, que precisam ser compreendidos como processos de redes, não apenas de Eduardo, mas também de Wallace, de todos que estão nos assistindo, dispostos a caminhar por uma perspectiva de decolonização do próprio corpo, da própria existência. Quando batizo o livro de Corpo-Território e a Educação Decolonial, já temos duas categorias imensas. O que é corpo-território? Tive acesso a essa ideia justamente lendo um teórico muito conhecido no Rio de Janeiro, mas que é baiano, aqui das nossas terras: o Muniz Sodré. Muniz Sodré, em seu livro “O terreiro e a cidade”, fala muito sobre essa questão da constituição do corpo território como o corpo – sobretudo o corpo afro-diaspórico – que chega em terras latino-americanas, terras colonizadas, onde conseguem restabelecer e ritualizar uma outra África, e conseguiram ainda viver, resistir. Algo interessante que Muniz Sodré fala é que esse corpo basicamente chega aqui seu próprio corpo, a matéria corporal. Só que essa matéria é, também, a matéria da espiritualidade, da ancestralidade. Então, o corpo que vem sem nenhum tipo de materialidade, sem uma mala, uma bolsa, uma roupa, nada consegue trazer, e ainda vem de um processo de violência, traz consigo o que chamamos de bagagem cultural, realimentada nas terras brasileiras, reorganizadas, criando outra perspectiva que originou o candomblé.
Nessa ideia dessas encruzilhadas para se pensar o corpo-território, eu me baseio muito em Muniz Sodré, justamente por compreender que meu corpo, seu corpo, os nossos corpos não são única e exclusivamente a matéria física, mas também um corpo que é alimentado e construído pela perspectiva da ancestralidade, das cosmopercepções, que tanto fala Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí – uma filósofa ioruba nigeriana, que escreve sobre as cosmopercepções. Mas, quando parto para uma perspectiva eurocentrada para discutir corpo, corpo está muito naquela ideia de Descartes, do “penso, logo existo”; corpo versus mente, razão versus emoções. A branquitude olha para o corpo colonizado e diz: vocês são os corpos animalescos, que não produzem conhecimentos, vocês não são corpos, são objetos.
Quando vamos ao livro de Dussel “O encobrimento do outro”, percebemos como é forte essa ideia de que a filosofia antiga foi utilizada, e se utilizou também – para se fortalecer –, de uma perspectiva de coisificar e objetificar qualquer corporalidade que estivesse para fora dos limites geográficos e epistemológicos da Europa. Então, os corpos encontrados nas Américas, em Áfricas, são corpos que, naturalmente, na perspectiva do colonizador, objetificados, que não tinham o direito de existir. Se Descartes fala “penso, logo existo”, quem tinha direito de pensar naquele período? Mas, quando chegamos em 2021, quem ainda tem o direito de pensar e existir, e quem não têm? Quando eu coloco o meu corpo na encruzilhada dessas provocações, eu percebo que também meu corpo, um homem gay, um corpo bicha, um corpo viado, um corpo homossexual, também não tem direito de existir, e precisamos reivindicar nossas existências, não só nas vias, nas ruas do dia a dia, mas também mesclar a identidade como provocações das políticas públicas, de Estado. Pensar corpo-território é justamente ter esse confronto constante entre a perspectiva eurocentrada, de que só pode pensar aquele corpo que existe num pensamento eurocêntrico, dos processos de civilização das Caravelas, e tudo que está para fora disso, que não tem direito a existência e a pensar. Só que, quando eu fui escrever sobre corpo-território na formação de professores e professoras para entender a constituição desses corpos-territórios, eu levei para a sala de aula da faculdade corpos que estavam se preparando para serem professores – alunos de pedagogia e de geografia. Eu tinha preocupação de mostrar para eles a parte eurocêntrica da perspectiva de corpo, mas também pensar por outra lógica: a de Muniz Sodré e dos valores afro-brasileiros.
Quando chegamos nas licenciaturas e perguntamos “o que é corpo?”, às vezes temos certa dificuldade de dizer o que é corpo, porque corpo fica muito limitado à ideia de comer, defecar, tomar banho, ir para a academia, sentir dores. Mas nosso corpo é um espaço de poder, de conflitos constantes. A todo tempo, existe um componente nesse mundo neoliberal que é o sistema político heterossexual, e que está o tempo inteiro dizendo – juntamente com a branquitude e com as colonialidade do saber, do ser, do existir, do poder – qual tipo de corpo temos que performatizar na docência, nas ruas, na academia, na vida diária. Meu corpo é o tempo todo vigiado, perspectiva por um pensamento de um sistema político heterossexual. Não estou falando basicamente das práticas sexuais, da penetração, do gozo, do desejo carnal – está para muito além disso. Quando falo desse sistema político heterossexual, baseado em Ochy Curiel, estou falando justamente de que esse sistema é personificado pelo homem branco, neoliberal, burguês, cis, hetero, quase sempre cristão, mas quando não é, se associa aos grupos cristãos pentecostais para fortalecer suas ideias de conservadorismo. E como ele olha para o corpo negro, para o corpo indígena, para os corpos LGBT+?
Quando pensamos a perspectiva de corpo para além de defecar, malhar, comer, percebemos que corpo é um dos elementos, um dos dispositivos utilizados pelo sistema para controlar as nossas vidas e determinar o que eu posso e o que eu não posso no âmbito das existências. Pela ideia da necropolítica, que o professor Wallace utiliza brilhantemente, vemos como o Estado se utiliza de suas questões institucionais para garantir a existência de alguns corpos e o extermínio em massa de outras corporalidades. Quando penso esse corpo na perspectiva da pandemia e da necropolítica, é novamente latente como o Estado, no sistema político heterossexual da branquitude, do cispatriarcado, se articula para comprar leite condensado a R$5,60/lata, mas, ao mesmo tempo, não tem dinheiro para garantir a existência e a vida do trabalhador e da trabalhadora. Então, qual é o valor, o preço, o significado dos corpos que estão na base do sistema? Ângela Davis, Lélia Gonzalez, Ochy Curiel, e tantas outras mulheres feministas negras, concordam que a base da pirâmide no processo capitalista é a mulher negra. Enquanto o topo se banha de leite condensado, a base fica sem o direito a oxigênio; enquanto o topo compra chiclete superfaturado, a base fica sem direito a seu auxílio emergencial. Tudo isso para pensarmos como esse corpo-território está sendo vigiado, punido, para trazer Foucault. Esse corpo é vigiado e punido justamente por conta das colonialidades, que são tão presentes em todas as normas e instituições do que entendemos como o pensamento latino-americano.
Nós estamos em construção e desconstrução também. Nessa ideia de corpo, eu utilizo a autora Conceição Evaristo, quando ela diz que os nossos corpos, as nossas escrevivências, não podem ser escrevivências meramente descritivas, porque Eduardo não descreve o mundo, eu sinto o mundo, o mundo me sente, o mundo me rejeita, mas o mundo também me abraça. Então, nesse jogo, nessas andanças, é que constituímos nossas corporalidade, nossas existências, nossos aquilombamentos. E quando vejo esses encontros aqui no CPDEL, “As histórias que a história não conta”, não consigo deixar de lembrar de Beatriz Nascimento, quando ela fala que a história do povo brasileiro é contada por mãos brancas. E peço licença a Beatriz para dizer que não só a história do povo brasileiro é contada por mãos brancas, como também a geografia, o português, todas as licenciaturas, a academia, a vida cotidiana têm sido contados pelas mãos brancas. Alguns alunos me pedem que eu explique isso didaticamente, e creio que o exemplo mais fácil de percebermos como esse sistema político heterossexual da branquitude, que escreve esses caminhos, é presente é olhando para a composição dos parlamentos de nossas cidades. Tivermos exceções, tivemos várias mulheres trans, mulheres negras, mas ainda são exceções. Quando pensamos nessa configuração, vemos latente os homens brancos heterossexuais, com suas falas conservadoras, cristãs, propagando o pseudo-discurso das ideologias de gênero, forçando goela abaixo uma escola sem partido. No final, o objetivo disso tudo acaba sendo o mesmo: controlar e garantir que os corpos-territórios que vão para a sala de aula formar os filhos e filhas de trabalhadores e trabalhadoras continuem perpetuando currículos e políticas públicas pedagógicas que alicercem o caminho para que a branquitude tenha seu direito à existência, tenha seu repertório garantido, e tendo um ganho substancial das políticas neoliberais.
Daí, eu fui caminhando um pouco e descobri que meu corpo precisava se repensar, repensar seu jeito de ser professor, levar para a sala de aula outras questões. Foi nesse caminho que encontrei a decolonialidade, em 2014. Eu sou um corpo em decolonização, porque cada dia é uma luta, uma batalha; a todo tempo a semiótica da construção do nosso corpo, de nosso olhar é uma ética, tem uma estética totalmente padronizada nas colonialidade do saber, do sentir, do existir, do gênero e das sexualidades, que advém do projeto de civilização das Caravelas. Eu me coloco como um corpo em decolonização. Esse corpo, que chega à universidade para ser professor de instituição pública e olha para o currículo da formação de professores e professoras, para as ementas eurocentradas, para os objetivos eurocêntricos, que perpetuam a perspectiva das colonialidade, começa a tentar trabalhar outro caminho, outra via. E como fiz isso? Fui à busca dos valores civilizatórios afro-brasileiros, que foi também uma das perspectivas que me leva ao caminho da decolonialidade afro-brasileira e de educação decolonial.
Mas tenho um incômodo que preciso externar para vocês. Nós, brasileiros, que estamos exercitando uma perspectiva decolonial, temos feito muito o caminho de olhar para fora do Brasil, e achar que decolonialidade está sendo feita lá fora, a gente aprende e traz para cá. Mas decolonialidade está aqui na minha rua, nesse exato momento. Decolonialidade está nas casas de terreiro, nos movimentos negros, indígenas, nas reuniões de grupos LGBT+, só que acabamos achando que decolonialidade e o movimento decolonial só pode ser respaldado se for lá pela Catherine Walsh. Quando digo para algumas pessoas que meu repertório decolonial é de autores e autoras negros e negras aqui da Bahia, as pessoas se perguntam se isso é mesmo decolonialidade. Se decolonialidade significa, também, um giro epistêmico, uma proposição a partir do território que eu construo com outras pessoas e que dá sentido às nossas existências, então os teóricos que estudam o território em que eu vivo e habito e que os meus alunos entendem e compreendem… Para mim, isso é decolonialidade. Por mais maravilhosos que os teóricos decoloniais latino-americanos sejam, eles nunca vieram ao meu território, então também é trocar uma caravela eurocêntrica por uma provável caravela de intelectuais latino-americanos que não conhecem o território onde eu trabalho e sou professor.
Dentro dessas perspectivas dessa educação decolonial, eu penso muito na professora Narcimária Luz do Patrocínio, que tem um texto brilhante, em que diz que “é preciso africanizar a universidade”. Podemos dizer que não é preciso somente africanizar, como expandir a outros movimentos organizados. Está certo. Mas minha primeira referência tinha que ter sido essa, porque acho que quase todas as pessoas que caminham pela perspectiva decolonial têm como primeiro gatilho a questão racial. Depois, ampliamos para gênero, sexualidade, etc. Foi justamente em minha pesquisa de doutorado que compreendi que deveria ampliar meu olhar para além do racial e do capitalismo, discutindo gênero, sexualidades, território, apagando ou dando sentido às existências. E foi exatamente isso que eu fiz, meu povo. Eu até brinco que a decolonialidade precisa até um determinado patamar que precisa constatar – esse é o cenário que nós temos. Depois dessa constatação, precisamos propor, porque a decolonialidade também se faz com proposições. Não adianta ficarmos aqui batendo a porrada na branquitude, na heterossexualidade, na cisgeneridade. Talvez eu não consiga romper com esse sistema todo de uma vez aqui. Mas o que eu posso fazer com o micro-espaço de poder que é a sala de aula e com a constituição identitária de outros e outras professores e professoras? É nisso que tenho me agarrado para sustentar as minhas trocas de pele e as minhas existências no ato de provocar outros corpos a se rachar. Até costumo dizer que, para algumas pessoas, essa minha fala de trabalhar os micro-espaços de poder talvez pareça dar voltar em torno de nada, realimentando a perspectiva neoliberal. Só que aprendi, dentro das casas de terreiro, pela perspectiva do candomblé, que a gente trabalha feito cupim. Quem tem muita pressa não chega a lugar nenhum, porque acaba se atrapalhando. Ainda mais sendo uma pressa que não é coletiva. Trabalhar feito cupim significa que, em algum momento, quando a Casa Grande se der conta, nós já estamos por dentro comendo tudo. Já estamos fazendo isso. Percebemos isso, por exemplo, com o golpe de Estado que tivemos ano passado, na Bolívia. Eles perceberam, novamente, o que Boaventura de Souza Santos chama de linha da razão proléptica: a percepção de que tudo permanece do mesmo jeito, desde das primeiras colonizações. Tudo é realimentado sem balançar essa linha. Mas os grupos subalternizados começaram a balançar com muita força essa linha. Isso é fruto das políticas públicas de cotas e das políticas de inserção, não só nas universidades, mas nos concursos, dessa necessidade de ter a presença de outros corpos territórios em espaços de poder. Quando conseguimos chegar nesses espaços de poder e ter consciência coletiva, do nosso respaldo político para determinado grupo, não conseguimos trabalhar se não pensarmos nossa coletividade.
Como propor essa coletividade na formação de professores, trabalhando em Salvador, em uma das maiores faculdades públicas do Nordeste? Trabalhei na UFBA por dois anos como professor substituto. É engraçado que eu trabalhei dois anos como substituto no primeiro andar, e no segundo andar eu era aluno de doutorado em educação. Percebi que eu tinha que abandonar meu projeto inicial, e meu projeto de pesquisa deveria ser a minha própria prática docente na constituição identitária daqueles alunos que estavam em sala de aula comigo. Só que tudo que eu ia estudar sobre identidade e profissionalização docente era eurocêntrico. Isso me incomodava muito. Por mais que fossem autores e autoras com perspectivas mais próximas do que eu acredito, ainda eram eurocêntricos, de outra conjuntura territorial.
Eu tive um grande despertar quando mirei meu olhar, troquei minha lente de leitura da formação docente, e comecei a visualizar, nas mitologias africanas, Oxumaré, o orixá que está na capa do meu livro. Oxumaré, para quem não sabe, é representado por uma cobra e um arco-íris. Sua saudação é Arroboboi, então Arroboboi Oxumarê. Oxumaré é o responsável pela troca constante de energia no mundo, o ciclo nunca tem fim, porque a cobra está o tempo todo mordendo sua própria cauda, em um ciclo infinito de possibilidades, e creio que todo mundo que passa pela formação docente a compreende como um espaço em que estamos o tempo inteiro aprendendo e desaprendendo. Sempre que estamos em sala de aula, trocamos de pele e ressignificamos nosso olhar sobre várias questões. Então, eu ficava muito em dúvida, porque quando eu lia muitos teóricos europeus, eles falavam sobre formação continuada. Só que Oxumaré fala sobre essa formação continuada, esse ciclo que nunca tem fim, no mínimo há mais de 10 mil anos. Para nós, Antiguidade é posto, quem vem primeiro é quem dá sentido à epistemologia que estou escrevendo. Fui escrever sobre o que batizei de “trocas de peles”, que tem base epistemológica e filosófica em Oxumaré.
Associei essa troca infinita de peles com a ideia de desterritorializar o nosso corpo, reterritorializar o nosso corpo. Todas as vezes que temos uma experiência, seja na formação inicial, na continuada, na sala de aula, e que atravessam nossas existências, trocamos de pele, porque o pai da filosofia da troca ininterrupta de conhecimento é Oxumaré, representado por uma cobra. Todas as vezes que a cobra amplia seu corpo, ela precisa trocar de pele. Esse processo de ampliar o corpo é justamente desterritorializar os corpos territórios. O que é desterritorializar? É quando você não cabe mais no corpo que você tinha. Quase todos que discutem decolonialidade têm seu primeiro despertar pela via racial, e depois vamos trocando de pele, tendo outras experiências.
Em 2020, assisti diversas lives com professoras transsexuais – Megg Rayara, Letícia Carolina, Bruno Santana – e hoje sou outro Eduardo, outro educador. Todas as vezes em que fui afetado por essas narrativas outras, eu desterritorializava esse Eduardo, e assumia outro corpo-território. O que dá sentido a essa troca de pele é uma perspectiva dos valores afro-brasileiros. Aí, alguém pode dizer: mas Eduardo, Deleuze fala, em dois de seus livros, sobre a troca do corpo que se amplia. Mas Deleuze fala de um contexto que não dialoga com as salas de aula do semi-árido baiano, por onde eu transito; não dialoga com a perspectiva dos professores, negros e negras em território baiano. E Deleuze não tem diálogo com essas outras experiências. Sem mencionar que os estudos pós-estruturalistas não se preocupam, de forma nenhuma, com discussões raciais. E quem estuda decolonialidade sabe que não há interseccionalidade se não houver raça.
Para além disso, meu livro não é meramente um livro apaixonado – também é. É um texto apaixonado, porque eu não vou desligar os botões das paixões, só vou pesquisar aquilo que meu povo precisa saber e que me apaixone, me deixe encantado, com muito tesão. E é militante também. Se querem dizer que meu texto é militante, é. Porque a branquitude milita o tempo todo e ninguém a chama de militante. Então, perfurar a bolha da universidade, entrar em um doutorado, se tornar professor concursado nessa instituição, e ter essa consciência coletiva: é justamente a perspectiva de combater os epistemicídios. Não somente os epistemicídios de Boaventura de Souza Santos, mas sim sobretudo os epistemicídios de que Suely Carneiro fala, pautado em causas raciais. Na América Latina, não podemos discutir epistemicídios se deixamos eles sem cor.
Outro detalhe que gosto de chamar atenção é que meu livro está respaldado em uma lei federal, a Lei 10.639/03, que obriga todas as escolas públicas e privadas e inserir em seu currículo discussões de historia e cultura africana e afrobrasileira. Depois, essa lei foi ampliada para Lei 11.645/08, incluindo a discussão da história e cultura indígenas. Meu livro atende a uma lei federal. Temos que ter muito cuidado para que essa não seja mais uma lei que não funciona. Meu livro tem a preocupação de atende às políticas da gestão e do pensar a instituição da identidade de professores por valores não eurocêntricos.
Eu conheci o Wallace em uma mesa de um evento de Extensão da UFRJ. Vendo a apresentação, pensei que ele tinha tudo a ver com o que eu discuto e queria me aproximar. Procurei o Facebook do OTAL e prontamente alguém me respondeu. Começamos a construir esse caminho. Não vou mentir: eu tinha muita resistência, não queria me associar a um grupo do Sul/Sudeste, por questões históricas de como o Sul e Sudeste olham para nossos corpos do Nordeste. Mas percebi que as redes estão aí para nos fortalecer, e quando encontramos pessoas em várias partes do Sul e Sudeste ou Norte, é que percebemos que estamos sozinhos.
PROF. WALLACE DE MORAES: Achei lindo quando você colocou que a sua referência são as pessoas que estão na sua rua agora, pessoas que, a princípio, não têm lugar na academia racista, elitista, ocidentalizada, estadolátrica, colonialista, um lugar de reprodução do pensamento europeu e de seus descendentes. A universidade é isso. Infelizmente, esse é o papel que ela cumpre há mais de 500 anos no Brasil e há mais de 1000 anos fora do Brasil. Ela não cumpriu um papel histórico de descolonizar o saber. Pelo contrário, ela reforça um sistema racista, patriarcal, cisheteronormativo que já conhecemos. É muitíssimo bonito ver a sua coragem, da Marta, de todos os nossos companheiros do Corpo-território, em uma universidade do interior da Bahia. É muito lindo vê-los ter essa coragem de enfrentar todo esse sistema poderoso. Quero lhe parabenizar muito. O seu livro é fantástico, nos ajuda a nos desintoxicar desse saber que é impulsionado na universidade.
Evidentemente, nós sofremos muito com isso. Já sofremos porque somos corpos negros. O corpo negro que não está para justificar e idolatrar o sistema colonial, ou a colonialidade do poder, é prontamente rejeitado. Você tem tido um papel fundamental de organizar o pensamento decolonial por todo o Brasil, ao buscar por coletivos, chamá-los para o diálogo, para formar uma rede.
O triplo epistemicídio ataca todo o saber produzido por indígenas, por negros e negras e todo o saber produzido por anarquistas. Obviamente, podemos ampliar para quádruplo ou quíntuplo epistemicídio ao incluirmos que é se opõe à cisheteronormatividade, e também contra o patriarcado branco, que oprime corpos femininos ao longo da história. Esse, talvez, seja o caminho que possamos pensar. Existem diferentes formas de colonialidade, de combater o racismo, de resgatar ou promover o debate, e de fazer com que pessoas negras e indígenas, amplamente subordinadas e exploradas, consigam ter espaço neste lugar em que estamos hoje. Hoje estamos online, mas, se estivéssemos reunidos fisicamente, estaríamos em um lugar construído por negros e negras, e onde negros e negras não podiam estudar. Até porque o saber ali difundido não diz respeito, não dialoga em nada com a cultura de negros e indígenas.
As leis que você mencionou foram conquistas do movimento negro e do movimento indígenas. Ao atribuirmos essas conquistas a pessoas individuais, ficaríamos subordinados novamente a quem está ocupando o Estado. Precisamos jogar luz ao movimento social organizado. Estamos cumprindo, talvez, um papel histórico de resgate e promoção do saber negro e indígena, popular, e também do branco pobre trabalhador. Assim, podemos focar bem contra aquilo que lutamos.
Você mencionou o necro-racista-Estado. Procuro mostrar como o Estado brasileiro é descendente legítimo direto do Estado moderno europeu, que nasceu racista e assassino, dialogando com Foucault, Mbembe e outros teóricos. Gosto muito da questão do aquilombamento. Acho isso lindo, estamos nos aquilombando. Esses quilombos se associam por meio de federações, sempre autônomas. Jamais um quilombo se subordina a outros. Não há hierarquias sociais. Em uma perspectiva libertária, todos devem estar, de maneira horizontal, no mesmo patamar, em igual posição de direito à fala e à execução, com total liberdade. É algo presente no comunalismo africano. Gosto muito do livro do Sam Mbah sobre anarquismo na África. Para ele, o anarquismo na África é meramente resultado do comunalismo africano. Obviamente, os indígenas aqui no Brasil não precisaram de Estado, de capitalismo, de sistemas opressivos destruidores da natureza, ou que viessem a estabelecer a ideia de mercadoria. Os indígenas brasileiros sempre lutaram contra o Estado e contra o sistema de produção de mercadorias, como dizem Munduruku, Krenak, Kopenawa, e diversos outros que continuam reforçando algo que já é praticado por povos indígenas há milênios.
PROF. EDU MIRANDA: Eu sou fruto da educação básica. Eu não sou professor por falta de opção. Escolhi fazer vestibular para ser professor. Tive outras opções na minha vida, tive oportunidade de fazer ensino médio na melhor escola particular da minha cidade, mas mesmo assim tive uma professora de geografia que me mostrou um mundo de possibilidades na educação, e aquilo me encantou. Eu gosto de falar sobre isso, para lembrarmos a importância do professor na educação básica, como referência de pessoa, de ser humano, de projeto de sociedade. Aquela mulher, Anetti Magalhães, despertou meu interesse pela docência e eu escolhi ser professor.
Algumas pessoas trazem a ideia de como pensar decolonialidade na educação básica, no ensino superior. O que podemos fazer? Como fazer com que isso aconteça? Digo para vocês que não há receita pronta, nem manual. Mas costumo dizer que o primeiro processo de decolonizar a educação básica é decolonizar o nosso próprio corpo. Enquanto eu não trocar minha lente de leitura do mundo, eu vou dormir e acordar com a lente do opressor. Então, eu posso estar indo para a sala sendo um corpo caravela, que é aquele corpo que vai o tempo todo, critica ou acriticamente, reproduzir um ideal de sociedade idêntico à caravela de 1492. Mais de 500 anos depois, a história continua se repetindo. O primeiro passo é repensarmos nossa própria existência. Sempre me questiono: por que será que tenho uma performance, sendo um corpo gay, que tenho? Por que será que eu sou o gay que eu sou hoje e não uma outra possibilidade de ser gay? Por que será que não tenho outra possibilidade de discutir minha própria existência? Porque me foi entregue um mundo preparado para que construíssemos nossos corpos territórios por aquele horizonte. A decolonialidade também é a ideia de discutir o horizonte que nos é apresentado. o currículo da escola apresenta um horizonte para o aluno que é eurocêntrico. Quando subvertemos essa ordem, essa subversão só faz sentido se começa pelo próprio corpo.
Agora, na pandemia, nas férias de janeiro, eu criei em meu Instagram o que venho chamando de bichagrafia. É uma tentativa de reencontrar a minha bicha que apagaram na infância, que mataram em minha infância. Porque se, hoje, eu estou mais perto de uma performance heteronormativo, é porque aprendi, para viver e para tentar ser menos violentado no sistema heteropatriarcal, que eu precisava matar minha bixa. Eu precisava matar o viado que eu era e – novamente a troca de pele – desterritorializar o meu corpo bicha, viado que todo mundo apontava desde a infância, para tentar territorializar o corpo hétero. E o que é essa tentativa? É dor e sofrimento. Para hoje, aos 33 anos, escavar a minha bicha soterrada no passado. Só eu sei o espelho que estou encarando. Aí, eu vou para o espelho de Oxum, que não é o espelho de embelezamento, é o espelho de estratégia de luta. Enquanto eu escavo a minha bicha, eu estou com meu espelho de Oxum, Abebé de Oxum, mirando que está atrás me atacando. E quem me ataca é o sistema político heterossexual. Falo por muitos e muitas que têm suas vozes abafadas. Tentamos evidenciar e visibilizar, através dos espaços de poder que assumimos, para decolonizar a educação básica, a universidade.
Muitas pessoas perguntam: se vocês criticam tanto a universidade, por que escolhem ficar dentro dela? Porque é nossa também. E eu não vou abrir mão do que é meu. Eu não vou abrir mão do que a Europa roubou de nossos antepassados africanos, estabeleceu que era deles e saiu espalhando pelo mundo dando outro formato. Originalmente, é afrocentrado pensar o que é universidade. Se é meu e se é dos meus ancestrais, eu vou reivindicar. Como está na música que nós colocamos para abrir aqui “Exú nas escolas”, de Elza Soares, “é tomar de volta / a alcunha roubada / de um deus iorubano”. O que significa isso? Eu não quero que Exú fique do lado de Jesus Cristo na secretaria da escola, mas enquanto Jesus Cristo não sair da secretaria da escola, eu vou reivindicar a existência de Exú nas escolas, porque queremos tomar de volta o trono de nossos ancestrais. E não é somente um trono de representatividade, é um trono de epistemologias, de produção de conhecimento, de outra perspectiva de democracia – que não é essa democracia suja da América Latina; é uma democracia que tem como matriarca Iansã. Na perspectiva Iorubá, Iansã é responsável pela democracia. É uma democracia que tem Xangô como justiça, porque Xangô é justiça para o povo Iorubá. Isso é fazer decolonialidade. As pessoas acham que fazer decolonialidade é pegar o conceito de Butler, Foucault e ressignificar. Fazer decolonialidade é aprender com os ensinamentos dos grupos sociais, dos povos originários, e entender como vamos romper e fissurar essa sociedade que nós temos. Só vamos aprender a combater esse progresso – de Hegel –, essa ideia de imaturidade – que é de Kant – quando fecharmos os livros de filosofia tradicional e abrirmos o livro da filosofia africana, afrodiaspórica, dos povos originários da América Latina. Porque são os povos que sempre ensinaram à humanidade como viver coletivamente e como compreender as nossas existências de uma forma que o homem não seja superior que a natureza. A natureza vive sem a gente, e nós somos a natureza, como diz Krenak.
Mas há outra questão: nós não decolonizamos somente no ensinar. Precisamos decolonizar no café da manhã. Nós não somos ilhas intelectuais que vão à universidade, devoram bell hooks, Angela Davis, Lélia Gonzalez, volta pra casa e vive uma vida de smartphones, enquanto os nossos pais e mães não tiveram acesso à universidade. A gente tem acesso, sistematiza, mas quando chegamos em casa nos tornamos uma ilha, porque a gente não socializa. Estamos tendo o resultado disso com a eleição de Bolsonaro – fora Bolsonaro, por sinal. Ninguém suporta mais essa sina.
Pensar isso tudo, Wallace, é muito completo. É muito complexo chegar em uma live e dizer qual o caminho da educação básica. Mas posso dizer que um dos caminhos é decolonizar o próprio corpo. A partir disso, não vou mais aceitar uma ementa eurocentrada. Você não vai conseguir, vai se sentir mal. Eu preciso primeiro compreender que meu corpo é preparado para reproduzir o machismo, a LGBTfobia, o racismo religioso, mas a gente se pauta tão esquerda e progressista que acreditamos jamais ser capazes de reproduzir opressões. É necessário assumir, porque decolonialidade não é apertar um botão e mudar da noite pro dia. É troca de pele, é constante.
Eu pensava muito corpo território como uma ideia de cosmovisão. A ideia de cosmovisão está muito centrada em nosso olhar. Mas não podemos esquercer que o racismo é pautado no olhar. Quando fui ler Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, ela me chamou atenção justamente para abandonarmos essa ideia de cosmovisão. Quando pensamos o racismo brasileiro, a LGBTfobia, o machismo e todo tipo de opressão, ela tem sua base inicial na visão, no olhar. Porque eu não me permito compreender, acessar outros elementos subjetivos daquela pessoa que está em sala de aula comigo, porque o primeiro elemento que vou usar para diagnosticar aquela pessoa é a minha visão, e a partir de minha visão eurocentrada eu determino quem é aquela pessoa. Cosmopercepções são justamente o ato de romper com essa visão já determina o corpo do outro como inferior, que é a mesma visão de Cristovão Colombo sobre os povos originários. Continuamos fazendo esse mesmo processo em sala de aula, seja na condição de aluno ou de professor. Quantas vezes nós, professores e professoras, olhamos para um aluno a partir de uma cosmovisão eurocentrada e já determinamos seu perfil, sem acessar as cosmopercepções que aquela pessoa traz para a sala de aula? Em meu livro, utilizei uma metodologia chamada sócio-poética, de como nós, pesquisadores e pesquisadoras, podemos nos aproximar dessas pessoas e ter um contato para além da visão, de determinar o outro pelo olhar. Isso também está muito baseado na ideia de Muniz Sodré, quando fala do jogo das aparências. A aparência é superficial. Conhecer uma pessoa requer um elemento da cosmopercepção africana: energia vital, trocada no encontro, compreendida quando estamos de frente com o outro, ou com outro elemento da natureza.
Decolonialidade é ato político; não é gabinete, não é Capes nem Qualis, nem escrever artigo para revista. É ato político, existência nas ruas. Algo que gosto muito da decolonialidade é o conceito de Dussel de “transmodernidade”. Decolonialidade, através da transmodernidade, é virar o olhar para grupos que são apagados e silenciados. Será que estamos trazendo a transmodernidade para o ato de aprender e ensinar? Os nossos alunos e alunas, da educação básica ou do ensino superior, representam o que a transmodernidade nos diz, porque são alunos negros, LGBTs, quilombolas ou indígenas, com todas as dificuldades de permanência.
PROF. WALLACE DE MORAES: Acho que o que você falou tem tudo a ver com o anarquismo, que é uma luta constante. Eu não diria que o anarquismo é europeu, mas o primeiro homem, a primeira mulher, o primeiro corpo que lutou contra todo tipo de autoridade, de opressão, de exploração está cumprindo um papel anarquista, em qualquer momento histórico. A perspectiva decolonial, ao jogar luz para os negros, oprimidos, discriminados, põe isso em prática. Se o significado é de luta por emancipação, pela liberdade de todos os corpos nesse mundo, a liberdade só se concretiza com autogoverno. Não temos que esperar por representação, por Estado. O princípio básico do anarquismo é entender que todos podem se autogovernar. Tudo que você falou casa perfeitamente. É por isso que o anarquismo não é dado nas universidades, tal como o pensamento negro e indígena.
[1] Entrevista de Edu Miranda ao prof. Wallace de Moraes, disponível no canal de YouTube CPDEL: https://www.youtube.com/watch?v=Xer6AcSzlSE&t=161s
Pesquisando sobre Educação Decolonial me deparo com essa fala inspiradora e instigante do prof. Edu Miranda. Me impressionou pela profundidade, pelas referências e pela percepção que ele tem sobre decolonialidade.