CARTA AOS COLETIVOS NEGROS, ANTIRRACISTAS E À CONGREGAÇÃO DO IFCS
Rio de Janeiro, 1 de setembro de 2021
Wallace de Moraes –
prof. do Depto. Ciência Política da UFRJ
Nós, negros e negras, do Brasil sabemos exatamente o que significa negação do racismo. Lélia Gonzalez já falava do racismo de denegação e da trajetória mais fácil de não problematizar tais questões. A maioria dos autores das ciências sociais nos descreveram como inferiores, sub-humanos, legitimaram que nos escravizassem, chegaram até a dizer que aqui existia “escravidão branda”, unindo duas palavras que se negam reciprocamente.
A negação do racismo institucional é, portanto, uma prática histórica das ciências sociais no Brasil. A Casa Grande se junta para nos manter subordinados. Somos taxados de forma priorística e sem sustentação concreta de desequilibrados, violentos, incapazes e que não podemos ocupar espaços de direção, inclusive, de uma banca de concurso. Não basta ser doutor e ter mais que o dobro de publicação daqueles que me excluíram da banca do certame para ser aceito como membro e de participar!
Para eles, nada disso é racismo. Aliás, como foi dito, fico me “vitimizando com essas questões raciais”.
Assim, não nos espanta que a chefe do Departamento de Ciência Política (DCP) da UFRJ, Thais Aguiar, seu substituto eventual, Pedro Lima, e Josué Medeiros – atualmente coordenador de Relações Externas da UFRJ -, divulguem uma nota negando que sejam racistas. Ademais, naturalizam que a grande prova de tudo, que era a gravação da reunião, “não existe”. Como não existe o registro de uma reunião pública de um Departamento da UFRJ?
A arrogância é tanta que os chefes do Departamento não cumpriram um dever institucional e tratam isso com naturalidade. Eles sabem que a Casa Grande vai protegê-los. Eles sabem que ao dizer isso, todos os racistas, que não assumem jamais que são, vão apoiá-los, vão ponderar, vão tergiversar. Um corpo branco não sabe a dor que é ter que provar sempre 200% de capacidade para chegar em um lugar como esse.
Na referida nota, a profa. Thais omitiu alguns fatos. Não disse, por exemplo, que consultou alguns professores associados para participarem da banca. Assim, ela não só não consultou a mim sobre minha vontade de participar como membro da banca do concurso, como ao ser indicado por outros, fez questão de negar minha participação. Justamente, o professor que tem formação na área do concurso. Seria um ato de discriminação racial, racismo? Tirem suas próprias conclusões. Os mesmos “intelectuais” brancos dirão que não. Já sabemos dessas posições a partir da leitura dos velhos clássicos das ciências sociais no Brasil, amplamente lidos nas nossas universidades.
Aliás, é exatamente por isso que as denúncias no DCP da UFRJ dizem respeito a todo o Brasil. Não se trata apenas de uma questão afeta ao prof. Wallace de Moraes, significa uma possibilidade de mudança de toda uma postura de cunho racista/autoritária e de uma crítica profunda a um currículo que forma as Thais, os Pedros e os Josués das nossas universidades. (De)Formação que expressa não só o absoluto desconhecimento do significado do que seja o racismo, bem como a falta de trato em lidar com um corpo negro. Não à toa, em pesquisa realizada no IFCS, por Patrícia Silva, junto à comunidade, expressou que o racismo é o principal problema do Instituto. Diga-se de passagem, no IFCS dentre 78 professores apenas dois são negros. É, realmente, não existe racismo aqui.
A nota divulgada pelos supracitados professores, alegando de forma conveniente que não gravaram a reunião departamental do dia 11 de agosto – justamente a reunião com ações discriminatórias, que resultaram em um fato, a exclusão da minha participação na banca do concurso a partir de argumentos subjetivos -, joga uma cortina de fumaça sobre um caso concreto.
Sobre essa nota e pontos correlatos é mister ponderar e colocar algumas questões:
- Ignoraram o fato de serem os responsáveis por efetuar a gravação, como o fazem todos os órgãos colegiados da UFRJ e como sempre foi realizado no próprio DCP, inclusive nos tempos das reuniões presenciais. Ao que parece, gravar a reunião e fazer o registro fidedigno das decisões administrativas constitui-se como uma determinação legal, além do que é a partir da gravação que se prepara a ata da reunião. Ademais, a gravação é uma prova cabal em possíveis processos de injúrias, difamações e explícita discriminação de cunho racista. Nesse sentido, pergunto: a quem interessa a não existência de uma gravação? Por que exatamente só essa reunião não foi gravada?
2) Se não tinham a gravação, por que se recusaram a responder na Congregação do IFCS do dia 27 de agosto? Pensando em termos de lógica, só permanece dúvida em uma resposta quando existem duas ou mais possibilidades. Com efeito, a pessoa pode escolher a que melhor lhe convier. Nestes termos, se não teria a gravação não existia qualquer possibilidade de escolha e, portanto, a resposta deveria ser dada, pois não havia como criar uma gravação. No entanto, somente três dias depois, concluíram que não tinham a gravação. Para quem não estava presente, é importante dizer que eu fiz um apelo naquela Congregação para que a chefia do DCP disponibilizasse a gravação. Eis que diante de mais de 90 participantes, naquela reunião histórica, a profa. Thaís e o prof. Pedro permaneceram calados, durante uma hora e meia, mesmo depois de vários membros da congregação reforçarem o meu pedido para disponibilizar a gravação. Inclusive, membros da congregação disseram se sentirem desrespeitados com o silêncio sobre essa pergunta que tem resposta simples e binária: sim ou não. Não se trataria de manter o silêncio para evitar problemas de interpretação, era uma resposta à uma pergunta sobre a facticidade da existência de uma prova cabal. Se não houve gravação, erra a chefe, por não criar manancial de objetividade para confecção da ata e não registrar por via absolutamente objetiva a reunião.
A minha justificativa para solicitar a disponibilização da gravação girou em torno do fato de estar assistindo uma contranarrativa sobre os acontecimentos do dia 11 de agosto que me fazem extremamente mal. Com efeito, os atores da discriminação perpetrada contra mim estavam publicamente se colocando como vítimas do processo e, ao que parece, essa é a sua nova estratégia. Procurarão reunir toda a Casa Grande para criminalizar um negro que se rebelou e denunciou que estava sofrendo discriminação no departamento. A UFRJ não poderá permitir isso.
- Qual documento a chefia do DCP enviou para a Congregação homologar a banca? A ata até hoje não foi votada. Então, a Congregação presidida pelo prof. Ivo Coser do DCP, que teve uma pressa descabida na condução do rito, aprovou uma banca sem ata do departamento? É possível isso? Reitero minha pergunta: qual é a validade de homologar em Congregação uma banca para qual não há ata de aprovação? Qual é o interesse de atropelar o rito democrático e homologar uma banca sem o documento que é condição necessária (conditio sine qua non) para sua aprovação ser válida? A banca foi aprovada com forte clima de tensão no DCP no dia 11 de agosto e uma Congregação extraordinária foi chamada para o dia 13 de agosto de 2021 mesmo com todos os avisos de problemas na escolha. Por que tanta celeridade?
- Conforme Portaria Nº 6.336, do dia 6 de agosto de 2021, publicada no diário oficial, o prof. Josué Medeiros foi nomeado para o cargo de Coordenador de Relações Externas. Como Josué Medeiros foi nomeado com cargo de direção gratificado em outro órgão, poderia ter participado com voz e voto nas reuniões do DCP e da Congregação? Esse voto é válido? Se esse voto não é válido, a decisão do qual esse voto foi parte é valido? E como essa decisão, ainda por cima, sem ata foi homologada em congregação?
- No dia 30 de agosto de 2021, a profa Thais e o prof. Pedro divulgaram uma nota sobre uma transcrição que tem circulado nas redes sociais. Foi dito na última Congregação que não poderia aparecer uma outra gravação se não fosse a oficial da chefia do DCP. Falaram em crime etc. Quem esteve na Congregação ouviu em bom tom. Então, a partir daquele momento, ninguém pode assumir que tem uma gravação. Todavia, ninguém pode me impedir, nem impedir a outrem, de reconhecer que a supracitada transcrição se constitui enquanto mais fiel relato do espírito da reunião e com partes literais das falas dos participantes. Defendo inclusive que essa transcrição deve constituir-se enquanto ata da reunião sobretudo porque a chefia do departamento não tem qualquer gravação da mesma. Outrossim, a transcrição é tão forte e fiel que remonta, para alguns dos participantes que a leem, as imagens que marcaram profundamente os acontecimentos daquele fatídico dia. Talvez, aqueles acontecimentos estejam nas memórias dessas pessoas até hoje, evitando que tenham uma noite normal de sono. O agressor esquece dos fatos, mas aqueles que sofrem daquela dor de humilhação podem ter pesadelos com isso toda noite.
- Agora que é público que a gravação que deveria ter sido feita pela chefia e que, segundo ela, não foi feita, com carta enviada para todos os membros dessa Congregação, sabemos que dar-se-á início oficial para uma disputa de narrativas que eles, aparentemente, desejavam desde o início estabelecer e que, lamentavelmente, só é possível sem a objetividade e facticidade que a gravação traria. Caberá às testemunhas de um dos episódios mais tristes da minha história particular, e dessa instituição, cumprirem seu papel histórico de reparação de um dano que já dura mais de 500 anos. De uma coisa tenham certeza, os movimentos negros comprometidos e cientes do seu papel e todos os antirracistas jamais esquecerão daqueles que oprimem, impulsionam e fazem vistas grossas para o racismo exercido na sociedade.
Agradeço ao Coletivo de Docentes Negras e Negros, à Câmara de Política Racial da UFRJ, à Frente Antirracista de Servidores Negros, Negras e Negres e a todos os coletivos negros e de aliados que me apoiam nessa luta. Também quero agradecer aos colegas do DCP que indicaram o meu nome e confiaram em mim como capaz de participar de uma banca e a todes amigos e alunos que reconhecem e respeitam o meu trabalho. Um agradecimento especial àquele que saiu da Funabem e hoje é um doutor, Ivanir dos Santos, e ao meu irmão Flávio Gomes. Sem vocês todes não seria possível resistir. Quando lutamos coletivamente e com ajuda mútua, ganhamos.
Seguiremos na luta por Zumbi, por Abdias, por Lélia, por Luis Carlos da Vila, por Carolina Maria de Jesus, pelas crianças assassinadas nas favelas e periferias desse país e tantos outras. Seguirei na minha luta antirracista e jamais aceitarei que alguém diga que me “vitimizo” por denunciar toda forma de opressão. Não esperem de mim um lugar de subordinação, aquele “neguinho” que é aceito porque obedece. É esse papel que a colonialidade quer e designa para corpos negros. Quando se é altivo, ciente do seu lugar de fala e de conhecimento, logo você é taxado de “desequilibrado”.
Espero que essa luta sirva de inspiração e que a Congregação do IFCS inicie hoje a reparação dos danos causados aos corpos negros. Se essa Congregação e a UFRJ permanecerem reticentes diante dos fatos e não tomar todas as medidas necessárias para reparação dos danos causados, correrá sério risco de ser cobrada pela História.
Por fim, depois de ter visto que a justificativa para excluir meu nome da participação de uma banca foram as acusações de “brigão”, “desequilibrado” e “vitimista” só posso dizer que seguirei “brigando” “desequilibradamente” em favor dos negros que ficam se “vitimizando” “sem motivo algum”. Ouvir tais acusações no Departamento de Ciência Política da UFRJ é duro, mas talvez explique porque alunos relatam o racismo como principal problema do Instituto. O IFCS e a UFRJ não podem permitir isso. Esse é o fato concreto que deve ser respondido. Qualquer outro caminho é desvirtuar do real. Enquanto isso, assumo que continuarei “brigando” contra todo tipo de discriminação disferida contra qualquer corpo, e por liberdade, igualdade e autogoverno para os povos negros e indígenas!