CARTA ABERTA DE RENÚNCIA DA DIREÇÃO DO NEABI/UFRJ
Prof. Wallace de Moraes
Rio de Janeiro, 03 de junho de 2025.
Fui nomeado diretor do NEABI em 26 de dezembro de 2023. Naquela manhã, acordei com uma intensa dor no peito – prenúncio de um infarto. Permaneci internado por três dias. Apesar de manter uma rotina de atividades físicas, alimentação vegetariana e abstenção de uso de drogas (lícitas e ilícitas) o estresse da luta contra o racismo produziu marcas de batalhas: me obrigou a colocar dois stents nas minhas artérias coronarianas.
Mesmo diante desse cenário adverso, que sugeria prudência, afastamento ou ao menos uma pausa, não hesitei em aceitar o mandato. Encarei-o como um grande desafio, pois tinha um projeto diferenciado para o NEABI da UFRJ – e acreditava que representaria bem os coletivos negros e indígenas da nossa universidade. Um projeto que objetivava criar urgentemente um instituto destinado à valorização das culturas, saberes, histórias, cosmovisões e lutas afro-pindorâmicas.
O objetivo seria oferecer disciplinas obrigatórias para todos os alunos da UFRJ. Assim, formaríamos médicos, engenheiros, arquitetos, botânicos, advogados, matemáticos e demais cientistas com conhecimentos e capacidade crítica sobre colonialismo, colonialidades, raça, racismo, escravidão – enfim, conscientes de que todos descendemos da mesma espécie: o Homo sapiens, que, aliás, tem suas origens na África. Dessa forma, deveríamos saber que não faz nenhum sentido discriminações pela cor da pele ou por outros traços fenótipos, ou culturais. Ensinaríamos a respeitar as diferentes etnias e suas culturas. Seria a implementação de um currículo pautado na alteridade.
Esse era o meu sonho, pois com racismo ou sem o combater, não há democracia, respeito, igualdade, liberdade, paz, nem ensino de qualidade.
A ideia parte de uma equação simples fundamentada em três premissas:
- vivemos em uma sociedade fundada e ainda marcada pelo racismo;
- corpos negros e pindorâmicos são discriminados pelas instituições que formam pessoas racistas;
- de acordo com pesquisas recentes realizadas em escolas, o racismo figura como o maior problema enfrentado pelas crianças e adolescentes.
Com doutoramento em Ciência Política, com área de concentração em políticas públicas, e atuando há mais de 26 anos como professor — inclusive no ensino médio e fundamental, o chamado “chão da escola” —, testemunhei de perto como o currículo tradicional opera e flerta com o racismo de forma direta e velada. Desde 2020, ministro cursos de extensão, gratuitos, para professores do Brasil inteiro.
Portanto, não cheguei a esse lugar por acaso. Não sou alguém que sequer tem formação em licenciatura, em políticas públicas ou jamais atuou como professor para alunos do ensino fundamental. Sempre apostei no coletivo, nunca estive aqui por vaidade, pretensa visibilidade extra-acadêmica, carreirismo, trampolins institucionais ou algo do gênero. Era uma aposta por compromisso: ajudar a implementar um projeto verdadeiramente transformador.
Em suma, não quero que restem dúvidas: a proposta de criação do instituto tinha por objetivo tão-somente democratizar o saber e combater o racismo epistêmico – ou, como preferem os autores decoloniais, a colonialidade do saber.
Meu primeiro ato após assumir a direção do NEABI foi criar um conselho deliberativo amplamente diverso, composto por professores, técnicos, alunos e movimentos sociais de diferentes campi e decanias: de Caxias ao CT. O segundo ato foi dialogar com cada colega sobre a importância de criarmos um instituto. Não foi uma tarefa fácil, pois não existe nada equivalente no Brasil.
Com o quadro coletivo formado, analisamos o regimento anterior e decidimos alterá-lo para os novos interesses do NEABI. Temos muito orgulho de todos os encaminhamentos terem passado pelas assembleias do Conselho deliberativo. Tudo foi amplamente debatido e democraticamente decidido.
Ademais, nossos colegiados nunca foram espaços fechados ou restritos aos seus membros formais – ao contrário, estiveram abertos a quem quisesse colaborar com o NEABI e construir o instituto. Respeitamos até quem não queria participar, apoiar, ajudar e trabalhar pelo NEABI. Também fizemos questão de apostar no consenso: nunca aprovamos nada com mais de duas abstenções em um quórum, às vezes compostos de 20, 30 ou 40 pessoas. Por óbvio, unanimidade só existe em ditaduras, explica ad nauseum parte da literatura da Ciência Política.
Outrossim, nesse curto espaço de tempo, fizemos um convênio com a Secretaria de Educação do município do Rio de Janeiro, abrimos um edital para publicações antirracistas, ministramos aulas e cursos de extensão. Nunca olvidamos da pesquisa, do ensino e da extensão e esse deve ser o papel do INEABI. Ele não pode ficar restrito à produção de eventos em datas festivas, como a branquitude racista o preparou e o aceitou.
A criação de um instituto dedicado aos saberes antirracistas jamais foi uma quimera ou alucinação de uma cabeça inebriada, mas um imperativo ético e fundamentado em um sólido respaldo legal. A LDB (1996), bem como as leis 10.639/03 e 11.645/08 estabelecem a obrigatoriedade do ensino das histórias e culturas negros e indígenas nos currículos educacionais.
Todavia, há uma questão crucial, frequentemente ignorada nos debates acadêmicos: a insuficiência estrutural dessas legislações que, em muitos aspectos, equiparam-se à Lei Áurea. Essa analogia não é retórica: é denúncia. Embora representem avanços históricos inegáveis, ignoram um princípio básico de qualquer política pública eficaz: o “como”? Todos sabemos que a lei que determinou o fim da escravidão não se preocupou efetivamente com o dia 14 de maio, no qual os negros estariam “livres”, mas sem emprego, sem salário, sem moradia, sem ensino, sem terras, sem dignidade. Portanto, saíram de um tipo de escravidão para entrar em outra, onde o “salve-se quem puder” foi a tônica. Os negros sobreviventes de hoje são verdadeiros heróis, apesar das políticas de extermínio perpetradas pelo Estado ou com a sua anuência.
As leis 10.639 e 11.645 seguem no mesmo caminho. Estipulam que os saberes negros e indígenas devem ser contemplados nos currículos escolares, mas não dizem como. Pergunto, então: como contemplá-las se os professores não têm acesso a esse conteúdo nas universidades? Como falar de inclusão quando as próprias instituições acadêmicas são territórios férteis para o racismo epistêmico?
A proposta de transformação do NEABI em instituto visava sanar esse hiato. Era uma forma de romper com a tradição brasileira de leis “para inglês ver”, criadas em resposta à pressão, mas desprovidas de eficácia. De fato, os idealizadores das supracitadas leis não atentaram para o fato de que, ao exigir do professor da base uma postura antirracista, o faziam sem lhe oferecer os instrumentos necessários para isso. Assim, a efetividade dessas políticas públicas depende, antes de tudo, da transformação do espaço onde esses professores são formados: a universidade.
Fica aqui a dica para os legisladores.
O que a nossa proposta fez foi oportunizar à UFRJ, que tem autonomia para fazê-lo, de assumir a dianteira entre as instituições de ensino superior, enquanto a maior e uma das mais importantes federais do país. Seria vanguardista criar um instituto dedicado às culturas, aos saberes e às histórias da maior parte da população desse território.
É óbvio que seria necessário compor um núcleo de docentes especialistas, capazes de formar os próprios professores – beges, negros, indígenas e de todas as identidades étnicas – que hoje atuam na universidade, mas que, como todos nós, não receberam formação adequada para esse propósito. E não há demérito algum nisso. Nas universidades, fomos todos educados sob o prisma do eurocentrismo. Alguns poucos colegas, por autodidatismo, conseguiram buscar uma formação alternativa que privilegia os saberes e as culturas afro-pindorâmicas.
Não temos dúvida de que essa seria a mais robusta política pública de combate ao racismo no campo educacional e curricular do país. Seria uma revolução educacional que precisa ser implementada o mais rápido possível para o bem das nossas crianças.[1]
Se criado, o instituto combateria o ciclo vicioso do racismo epistêmico no sistema educacional, estruturado da seguinte forma:
a) o professor se forma na universidade sob o prisma eurocentrado;
b) esse professor reproduz esse conhecimento para seus alunos;
c) os alunos internalizam esse referencial e o reproduzem na sociedade;
d) o eurocentrismo, por sua própria natureza, é racista;
e) a universidade, ao manter essa lógica, torna-se agente multiplicador do racismo na sociedade.
Romper esse ciclo seria não apenas necessário, mas urgente!
Mas esse sonho virou pesadelo. Que os racistas de sempre se oporiam ao projeto, não tínhamos dúvidas e já estávamos preparados para enfrentá-los com toda a nossa determinação, junto com os movimentos sociais. O que não previmos foi o boicote velado e aberto de figuras negras. Justamente de quem, imaginávamos, caminhava ao nosso lado. Foram balas perdidas que ceifaram corpos negros, nas favelas, e pindorâmicos, nas aldeias. No caso do NEABI, ceifaram ideias, propostas, compromissos e mobilização libertária, evitando que de fato fosse mobilizador e antirracista, nunca um escaninho da burocracia acadêmica ou de interesses pessoais.
Para o fogo inimigo, nos preparamos: criamos escudos, erguemos barricadas. Mas para o tiro pelas costas, não há blindagem possível. Esse foi fatal. Seguimos sangrando até agora – feridos no corpo, na alma, na dignidade intelectual.
Alguns desses “fogos amigos” vi com os meus próprios olhos, outros foram relatados por colegas com riqueza de detalhes. Só vinha à memória as diferentes tentativas de fuga do cativeiro perpetrada pelos nossos antepassados e desbaratadas pelos negros capitães-do-mato a serviço dos senhores.
A recomendação por fazer um novo processo foi um golpe atroz. O parecer e as falas de alguns conselheiros sequer reconheceram um único mérito em um projeto de alcance revolucionário. Não ouvimos nenhuma abordagem sobre o racismo institucional no Brasil ou o quanto ele faz mal aos afro-pindorâmicos e às nossas crianças em particular. Nada. Ao contrário: centraram-se em “falta de vírgulas” como se fossem crimes capitais, transformando questões de forma em intransponíveis barreiras de conteúdo. Algumas falas de conselheiros parecia estar movida por muita raiva e desejo de humilhação.
Duvidamos que outro projeto tenha sido submetido a tamanha violência naquele fórum. Parecia dia de caça aos fugidos da senzala. Assim, alguns dos senhores e as senhoras beges com o beneplácito dos seus capitães-do-mato e bandeirantes, caçaram os idealizadores das fugas para os quilombos na frente de todos os outros que apoiaram a empreitada.
Naquele momento, o espírito de Domingos Jorge Velho se regozijava de alegria e zombava de Zumbi, de Lélia, de Abdias, de Clóvis e de Beatriz. O pelourinho ficou todo ensanguentado. Não respeitaram nem a data simbólica que era o 13 de maio.
Vejamos: a análise do nosso regimento demorou quase um ano. Ainda antes do debate sobre ele, conversamos com a professora responsável, que nos recebeu cordialmente. Suas sugestões foram pertinentes — e todas foram acatadas, ainda no ano passado. Para a nossa surpresa, no entanto, no dia da reunião surgiram novos “obstáculos” para a criação do instituto, nunca antes mencionados e a parecerista não estava presente. Então, não tínhamos a quem questionar.
Pensamos que todo aquele desgaste poderia ter sido evitado. Bastaria nos chamarem para uma nova conversa para que reformulássemos os pontos supostamente problemáticos, antes de levarem o parecer negativo ao plenário. Isso teria poupado os membros do NEABI, os representantes dos movimentos sociais presentes — e a mim, em especial — do vexame público a que fomos submetidos.
Nunca vimos nada equivalente acontecer nas reuniões daquele Fórum. Nem sequer aceitaram reformar o regimento. Temos dúvidas se fariam isso com os beges. Aquela reunião escancarou uma universidade ainda colonizada. E sentimos na pele o preço de ousar romper as correntes.
Alguns colegas estão tão profundamente colonizados que enxergam esses acontecimentos como naturais.
Não! Não é normal. Os afro-pindorâmicos, em pleno século XXI, não podem – e não devem – naturalizar procedimentos coloniais travestidos de burocracia.
Assim como no passado, senhores e os seus capitães-do-mato seguem utilizando os mesmos argumentos para conter qualquer movimento de ruptura. Antes diziam: a) que a economia não suportaria o fim da escravidão; b) que havia democracia racial; c) que nossa escravidão era branda. Hoje, na UFRJ, afirmam: “não há verba para implementar o Instituto”, “precisamos manter o modelo atual, pois foi assim que foi idealizado e funciona em outras universidades”; ou ainda: “não podemos ministrar disciplinas específicas, pois isso desvaloriza outras faculdades e núcleos já existentes”. São variações modernas dos mesmos sofismas: para justificar o cativeiro intelectual.
Pasmem: antes mesmo da criação do instituto, já surgiram propostas de controle dos futuros concursos destinados aos docentes do NEABI. O projeto nem saiu do papel, mas a cobiça já estava no ar. É estarrecedor.
É triste constatar como certas pessoas se revelam oportunistas, agindo à luz do dia sem nenhum constrangimento. Fica evidente que não possuem nenhuma formação decolonial, contra-colonial, anti-colonial ou quilombola sólida, mas, simultaneamente, se valem da cor da pele negra para patrocinar suas eternas campanhas eleitorais por cargos de direção na universidade.
Na hora de apoiar a maior política pública antirracista no campo do currículo, hesitam, sabotam ou simplesmente se omitem. Mas, quando se trata de disputar poder, assumem a negritude com oportunismo estratégico.
Não é a primeira vez que isso ocorre. Essa conduta foi amplamente criticada por Malcom X, Kom’Boa Ervin, Angela Davis, Lélia González, Cornel West, entre outras/os pensadores e ativistas.
Malcolm X em sua lucidez implacável, classificava os negros em duas categorias: o negro da Casa e o negro da Plantation. O primeiro era o bajulador do senhor, um assimilacionista, que fazia de tudo para manter seus poucos privilégios em relação aos negros da plantação. Era ele quem ocupava os cargos de pequeno poder na engrenagem colonial (capitão-do-mato, bandeirante, feitor) e impedia a fuga e a formação dos quilombos. Décio Freitas os chamava de “aristocracia escravizada”.
Lélia González os apelidou de “preto jabuticaba”, por ser “preto por fora, doce, branco por dentro e com um caroço difícil de engolir.” Frantz Fanon com sua genialidade crítica, os identificou nas máscaras brancas que o negro precisava vestir para sobreviver. Daí nasceu o seu conceito de alienação colonial.
Cida Bento nomeou de pacto da branquitude a conivência entre sujeitos beges na manutenção dos seus privilégios – mesmo quando em desacordo entre si. Grada Kilomba chamou esse fenômeno de racismo cotidiano. Em seu conjunto, esses elementos estruturam o que Aníbal Quijano conceituou como colonialidade do poder.
É importante lembrar que as políticas afirmativas foram sobejamente combatidas e criticadas por docentes da UFRJ, sendo uma das últimas universidades públicas a adotá-las, antes que houvesse uma lei federal que a transformasse em política pública nacional.
Enfim, toda aquela caçada pelas matas ao projeto de criação do instituto culminou no açoite no Pelourinho instalado na zona sul do Rio de Janeiro. Não sei se sabiam, mas não era um ataque a um diretor, mas aos movimentos sociais, ao sonho coletivo de um ensino verdadeiramente descolonizador.
Não sem surpresa, vimos setores negros que tinham direito à fala calarem-se, diante do açoite público. Soube, inclusive, que houve tentativas de pessoas que estavam junto comigo na condução do NEABI de impedir que vozes favoráveis à criação do instituto se manifestassem naquele dia. Diante desse quadro, de fato, a branquitude se sentiu confortável para barrar o INEABI no dia 13 de maio porque sabia que os seus “criados de estimação” estariam apoiando-a. Tenho dúvidas se não estava tudo acordado entre os senhores e os capitães-do-mato, tamanha a harmonia entre suas ações e omissões.
Aprendemos desde cedo com o colonialismo: não devemos nos insurgir – e, se alguém o faz, não devemos apoiá-lo. Caso o façamos, a chibata estará pronta para cantar sua música sacra nas nossas costas ou para retirar nossos “carguinhos” na universidade.
Todavia, quero compartilhar aqui uma reflexão dolorosa: atuar na UFRJ é estritamente desgastante, pois se trata de uma universidade que busca a inovação, mas, ao mesmo tempo, é bastante conservadora. Ficamos estarrecidos quando vimos no PDI (Plano de Desenvolvimento Institucional) o novíssimo curso de graduação em Inteligência Artificial, mas sangramos com a ausência do INEABI. Quando perguntei o porquê da ausência, ninguém soube responder. Foi sintomático e doloroso.
Não vi nenhuma campanha que questionasse falta de verba para criar uma graduação em IA.
Contemplar ambos os projetos seria um gesto de sabedoria: um casamento entre o futuro (IA) com a ancestralidade (INEABI). Como diz o querido Ailton Krenak: o futuro é ancestral!
Estar no NEABI e observar, com tristeza, as movimentações egóicas de negros da casa-grande em busca de cargos e crenças de distinção foi o que me imputou a investigar historicamente como se deu a construção desse fenômeno. Quais os legados do colonialismo que aprisionam corpos afro-pindorâmicos nas estruturas de poder coloniais? Será sobre esse tema um dos meus próximos livros.
Um ser digno precisa reconhecer a derrota. Perdi. Mas tenho a convicção de que estava na boa batalha e que ela era coletiva e revolucionária. Tenho certeza de que estava ao lado dos movimentos sociais, das esperanças que insistem em brotar mesmo no solo árido das instituições coloniais.
Sinto pena dos que venceram.
Nesse momento, entrego o cargo de diretor do NEABI, bem como minha participação em todas as comissões às quais estive vinculado nesse processo. Preciso cuidar da minha saúde que quase foi a termo nessas últimas semanas. Sinceramente, senti o gosto amargo do infarto novamente no meu paladar. Minha imunidade caiu tanto que fiquei uma semana praticamente de cama, sem forças. Além disso, também preciso dar mais atenção à minha querida mãe que enfrenta o câncer e outros problemas de sua idade e para minha família e suas questões cotidianas.
Mais que isso: quero retomar aquilo que sempre me revigorou: a pesquisa, a escrita, a extensão, o diálogo com alunos do Brasil inteiro – inclusive com muitos professores da UFRJ, que frequentam o meu canal no Youtube e engrandecem a audiência com presenças generosas.
Tenho livros por terminar: ninguém poderá escrevê-los por mim.
Lamento pelos que querem o meu lugar para conseguir promoção pessoal sem legitimidade acadêmica qualificada. Nunca apostei em ser titular do oportunismo e optei pela reserva da produção acadêmica e formação intelectual de graduados, mestres, doutores e pós-doutores. Fiquem à vontade com essa necessidade.
Agradeço ao magnífico reitor, Roberto Medronho, pelo apoio durante a nossa breve, porém intensa, gestão, pela confiança, espírito público e diálogo franco.
Agradeço a todas e todos do Conselho deliberativo, das coordenações, da secretaria e às bolsistas que acreditaram no projeto e vestiram a camisa com coragem, comprometimento e esperança, sonhando com uma revolução antirracista no currículo escolar. Agradeço aos que não se omitiram. Admiro as pessoas leais e de coragem.
Agradeço aos movimentos sociais negros e indígenas que estiveram sempre ao nosso lado: Aldeia Maracanã, Aldeia vertical, AQUILERJ (Associação dos Quilombos do RJ), Frente Favela Brasil, Frente Nacional Antirracista, UNEGRO, Educafro, Ceap, Coletivo dos Estudantes Indígenas (CEI UFRJ), Quilombo e centros acadêmicos do IFCS e tantos outros coletivos.
Nada de novo e revolucionário se constrói sem os movimentos sociais. Eles são as origens e os destinos de qualquer projeto que almeja justiça social. Todas essas demandas dizem respeito a esses movimentos que jamais podem ficar a reboque da intelectualidade que, na primeira oportunidade, poderá trair os coletivos em favor de cargos e acordos espúrios.
Mesmo com o veto ao projeto, realizamos um gesto simbólico poderoso: fizemos um abraço coletivo, um ajeum, e um ato maravilhoso com falas potentes dos nossos verdadeiros aliados. Mais de 100 pessoas, de diferentes movimentos sociais, estiveram presentes, em um dia em que as aulas foram canceladas em função do extermínio de pretos em favelas do RJ. Nada mais emblemático do que a realidade batendo à porta da universidade.
Aos que simularam estar ao meu lado, mas não moveram nenhuma palha em favor do processo, ofereço o meu perdão. Não por complacência, mas por consciência. Sei o quanto o colonialismo faz mal e adoece os afro-pindorâmicos, atentando contra sua psiquê, sua autoestima, sua capacidade de sonhar e romper com as correntes. Muitos se acostumaram a viver de migalhas – e, como nos ensinou Fanon, internalizaram a lógica da casa-grande. Ou, como defende Nêgo Bispo, foram fortemente adestrados.
Por fim, desejo todo o sucesso do mundo ao NEABI. Ajudei a plantar sementes, caberá a vocês deixá-las perecer ou regá-las para posteriormente colher frutos antirracistas. Como disse desde o início: nunca apostei em cargos e me envergonha aceitar que um NEABI seja restrito a fazer “eventinhos” para animar a casa-grande em datas festivas ou que sirva como trampolim para “boquinhas institucionais”, como é seu estado atual.
Assumo a minha ingenuidade por almejar uma transformação radical do ensino em Pindorama. Essa revolução passa, necessariamente, pelo enfrentamento direto ao racismo, com políticas públicas concretas. E, nesse sentido, apenas a criação de um instituto autônomo destinado ao ensino, pesquisa e extensão poderá salvar nossas crianças – vítimas cotidianas de zombarias e violências simbólicas externadas por livros, professores e colegas, ao desmerecer suas culturas, hábitos e fenótipos.
Pelo bem das nossas molecas e moleques, esse projeto não poderia esperar mais um ano para ser apreciado. Viva a saúde mental de todas as crianças negras e pindorâmicas desse país. Em breve conseguiremos nossos objetivos e todas vocês serão respeitadas, independente das suas culturas e cor da pele.
Solicitamos que essa carta seja incluída na íntegra na ata dessa reunião do NEABI.
Com amor,
Wallace de Moraes – ex-Diretor do NEABI/UFRJ.
Rio de Janeiro, 03 de junho de 2025.
[1] É óbvio que precisamos também de uma escola integral que contemple o desfrute de esportes, culturas (música, artes etc), o uso da inteligência artificial etc. Ao mesmo tempo, devemos debater o respeito ao cosmos, aos ancestrais, aos mais velhos, aos diferentes. Também são necessárias: a) a criação de mais vagas nas universidades; b) garantir a permanência dos alunos mais pobres.