ANARQUISMO, GEOGRAFIA POLÍTICA E A CRISE DO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Live de 16 de julho 2020[1]

Autor: Wallace de Moraes

Edição/transcrição: Cello Latini

Quero agradecer ao convite do centro acadêmico de geografia da Universidade Federal do Amazonas, é um enorme prazer estar aqui participando, podendo colaborar um pouco para um debate tão necessário sobre o significado de uma filosofia anarquista. Do ponto de vista intelectual, na minha época de graduação eu não tive contato com o anarquismo, eu acabava comungando com uma perspectiva marxista. Até que conheci o anarquismo e descobri que eu sempre fui anarquista, e acabava procurando um anarquismo no marxismo, que não existia. Acho muito importante começarmos por aí. Hoje, se perguntarmos para qualquer pessoa na rua ou nas universidades o que é anarquismo, não será incomum se falarem que o anarquismo é sinônimo de bagunça, desordem e coisas do gênero. Por isso, é importante apresentarmos aqui a filosofia política anarquista – na verdade, o anarquismo não é só uma filosofia política, para além disso, é um modo de vida, um modo de pensar o mundo, de construir e de atividade, é um modo de lidar consigo mesmo, com o outro e com a coletividade.

Não é de conhecimento geral que o dia primeiro de maio homenageia os anarquistas assassinados em Chicago, que estavam lutando por direitos dos trabalhadores. Muitos também não sabem que o dia 8 de março, o dia da mulher, também foi em homenagem a anarquistas que foram queimadas também nos Estados Unidos. Muitos conhecem essas datas importantes, mas poucos conhecem sua verdadeira história. A priori, se um dia o anarquismo sair vitorioso, o dia do trabalhador será todo dia, assim como o dia da mulher. Aí, entram dois princípios fundamentais do campo anarquista, que é o anti-patriarcado, em relação à defesa da mulher e da comunidade LGBT. Hoje, é muito comum as pessoas defenderem mulheres e igualdade de gênero, mas o campo anarquista foi o primeiro a fazê-lo.

Por que não sabemos que tanto o Primeiro de Maio e o Oito de Março dizem respeito a lutas anarquistas? Trata-se de um desafio teórico-metodológico desvendar esses mistérios. Vamos tentar elucidá-lo.

EPISTEMICÍDIO

O conceito de epistemicídio, de Boaventura de Souza Santos. Significa que todas as perspectivas teóricas, filosóficas, que são construídas fora das universidades são prontamente negadas, assassinadas. Daí, o termo “epistemicídio”, que é a junção de “epistemologia” com “homicídio”, ou seja, como se mata tipos diferenciados de epistemologias. Eu ampliei o conceito de Boaventura de Souza Santos, no sentido de que, para além da negação de todo conhecimento que é produzido fora da universidade, também ocorre epistemicídio com teorias que são produzidas, em alguma medida, também dentro da universidade, mas que contestam todo o sistema moderno.

Quando estou falando de “moderno”, já estou associando com a teoria decolonial. A modernidade foi criada a partir da formação dos Estados nacionais europeus, e os primeiros foram Portugal e Espanha. Depois dessa formação, a Espanha faz uma centralização do poder, ao tomar Al-Andalus, que corresponderia hoje ao sul da Espanha. E então a Espanha parte para a conquista das Américas, com muito sangue, assassinato, tortura, estupro, humilhação que ocorreu com os povos originários das Américas, ou com o processo de transformação de negros e negras africanos em escravos para a produção de um sistema econômico que nascia naquele momento: o capitalismo.

Esses princípios, tanto da conquista das Américas como de formação do Estado moderno, e como a formação de um Estado que deu todo o aporte para a construção de um modelo econômico capitalista, foram atravessados pela ideia de racismo. Para os europeus, negros e indígenas eram subumanos. Inclusive, na primeira carta de Colombo para a realeza, se suspeitava: são humanos ou não são humanos? Eles têm alma ou não? A lógica era que se os indígenas não têm religião, eles não têm alma, e se não têm alma, não são humanos.

Essa não é uma discussão clássica da teoria anarquista, mas da teoria decolonial que ajuda a elucidar alguns pontos obscurecidos da História. O que estou querendo trazer é que pouco se discute que o papel de escravização de negros e indígenas aqui em nosso país, de subordinação, humilhação, dominação, ocorreu por meio do Estado e aqui casamos com a importância da filosofia anarquista.

ESTADOLATRIA

Todos os teóricos, de Platão a Nozick, passando por Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, Montesquieu, Stuart Mill, Hegel, Marx… São estadolátricos. Eles não conseguem conceber a organização da sociedade sem o Estado. Eles divergem sobre diferentes maneiras de organização social, mas em todas há o Estado, ou pelo menos a Estado de transição. E o que significa o Estado para o governante, o proprietário, o rico? Significa a garantia da desigualdade social e colocar-se ao topo. Porque esse Estado nasce para atender seus interesses. O Estado nasce com interesses capitalistas e patriarcais. No mesmo período em que se conquista as Américas, a África e a Ásia e que se exterminam negros, indígenas e asiáticos, as mulheres brancas europeias eram acusadas de bruxas e queimadas vivas aos milhares, com amplo apoio do Estado e da igreja.

Para Kropotkin, o Estado foi criado pelo padre, pelo militar e pelo juiz. O próprio papa coroava os reis na Europa. Tanto bruxas quanto hereges foram exterminados, na Europa, pela igreja, pelo Estado e pelo militarismo. Se trazemos essa perspectiva simples para nossa América, é muito pior. Se brancos hereges e brancas bruxas foram exterminados pela Inquisição, aqui na América o extermínio foi infinitamente maior. Foucault acertou ao inverter por completo o histórico e a legitimação do papel do Estado na Europa. O soberano possuía poder de vida e de morte sobre seus súditos, ou seja, era papel do soberano decidir quem iria viver ou morrer. Foucault, ao fazer isso, inverteu os postulados da teoria política clássica. Depois, ele cria o conceito de biopolítica, em que, a partir do século XVIII, o Estado passa também a regular a vida. Nessa ampliação do papel do Estado, que se resumia apenas ao poder do soberano, e incorporou a biopolítica, o biopoder, Foucault identificou que, apesar de o Estado continuar podendo definir quem deve morrer ou viver, ele passa a buscar garantir interesses de maior longevidade para aqueles que escolhe por garantir a vida. Dito isso, imagine quem será escolhido para viver mais tempo. Certamente, não serão os anarquistas, os indígenas das Américas, negros africanos, asiáticos, muçulmanos, etc. Existe uma biopolítica cortada pela ideia de raça, e pautada pela ideia de racismo. A ideia de diferença da cor da pele teve por objetivo estabelecer um modus operandi de um modelo civilizacional em que o europeu estava no topo.

Do ponto de vista da filosofia política, chamo a crença de que não podemos viver sem Estado por estadolatria. É uma idolatria ao Estado, à hierarquia, à autoridade. Hoje, como eu particularmente estou juntando a filosofia anarquista com a filosofia decolonial – que significa olhar para o mundo do ponto de vista indígena, negro e seus descendentes – é fundamental saber fazer a crítica do Estado. Me entristece muito quando um ou outro movimento, por profundo desconhecimento histórico, defende o Estado e acredita que só há alternativa pelo Estado. Esse é o fenômeno que aporta todo tipo de ditadura.

Defendo que hoje vivemos sob uma ditadura, uma ditadura específica para determinados grupos. Não é inteligente achar que a ditadura abarca todos. Ela só atinge os rebeldes, os insubmissos. Se tiver um negro e um indígena que fique feliz em ser explorado por seu patrão e que não faça nada para diminuir essa exploração, ele não vai ser oprimido por essa ditadura, por esse Estado. Agora, se ele rompe com esse papel que lhe é designado por esse eurocentrismo, pela estadolatria, ele será exterminado, ocupará ou as prisões ou os cemitérios.

O papel histórico do Estado é matar, destruir a vida, garantir a exploração daqueles que podem deixar viver meramente para produzir riqueza para os que estão no topo. Às vezes, vejo um ou outro aluno dizendo que “o papel do Estado é criar direitos, garantir direitos para os trabalhadores, para as mulheres”. Fico pensando: de onde ele tirou isso? O Estado não nasceu para isso. Evidentemente, durante um pequeno período histórico, ele criou direitos para os trabalhadores, mas até esse episódio é descolado do seu contexto histórico. Praticam o historicídio. A História oficial omite que esse Estado foi obrigado a criar direitos sob ampla pressão do movimento popular, com muitos protestos, muitas greves, muitas mortes, muita tortura. Se temos alguns direitos, eles se devem àqueles que lutaram demais no passado. E se hoje estamos perdendo direitos, é porque a ideia de luta, de ação direta, de fazer pelas próprias mãos e não esperar que façam por nós, foi abandonada. Essa ideia de fazermos coletivamente é essencialmente anarquista. Mas eu diria mais: ela não é só anarquista, ela é também indígena, que, a priori, já demonstrou em toda sua história como não é necessário Estado para organizar vida.

A Estadolatria significa uma negação do autogoverno, da autogestão, da possibilidade de os governados poderem se autogerir. E isso está inscrito em todos os teóricos eurocentrados. Eu costumo até brincar com meus alunos em sala de aula e digo “que bom que tem o Estado, se não vocês iam se matar aqui agora”, já que o interesse de um é querer matar o outro. Essa é a crítica anarquista ao pensamento moderno.

Do ponto de vista histórico, o primeiro a se autodeclarar anarquista foi Proudhon, na França, no século XIX, filho de uma família camponesa. Foi autodidata. O principal conceito que marcava o anarquismo era o mutualismo, baseado na ajuda mútua. Mas eu gosto muito mais da definição do Kropotkin, que é geógrafo. Para ele, o que estamos defendendo é o que a humanidade já faz há milênios. Nosso princípio da ajuda mútua é algo que já fazemos há milênios. O princípio do autogoverno, da autogestão, de que não precisamos de autoridade para nos dizer o que devemos fazer, também. Hoje chegamos ao absurdo de falar do Estado como se fosse algo natural da sociedade, mas o Estado é uma criação para oprimir, governar. O ato de governar o outro, para a teoria anarquista, é um absurdo, é um crime! Se você quer governar o outro, em qualquer campo, se quer impor suas ideias sobre o outro, você está sendo anti-anarquista, está seguindo os princípios do amor à autoridade e da estadolatria, que vêm ligados a outros princípios: a hierarquia, a desigualdade. Se um governa o outro, quem está no topo está acima, hierarquicamente.

PAPEL DO ESTADO PARA OS COLONIZADOS

Os povos negros, indígenas desse país estão sendo massacrados há mais de 500 anos pelo Estado. Quem afirma o contrário ou não percebeu isso está cometendo um profundo historicídio. Quando negros escravizados nesse país saíram das terras de seus senhores e formaram quilombos e mocambos, quem foi destruí-los? O Estado! Aliás, esses quilombos eram autogestionados.[2]

O MUNDO EM QUE VIVEMOS HOJE É HOBBESIANO E LOCKEANO.

Segundo Hobbes,“o homem é o lobo do homem” e a liberdadeé maléfica, por essas justificativas que a sociedade deve abrir mão da liberdade em favor do Estado centralizado, hierárquico, absolutista. Embora o absolutismo defendido por Hobbes não seja amplamente aplicado atualmente, o princípio de que os homens precisam ser governados, senão matarão uns aos outros, permanece.

Locke era um grande proprietário de escravos. Liberalismo e escravidão nasceram juntos. Não há incompatibilidade entre esses princípios. A ideia de liberalismo como defensor da liberdade é a maior falácia da epistemologia ocidental. Os liberais sempre defenderam liberdade para o mercado, para os capitalistas e se opuseram a concedê-la para os trabalhadores. Como disse Locke, “o trabalho que meu criado fez me pertence”. Assim, a teoria da propriedade do Locke só serve para o proprietário. Locke foi o primeiro a dizer que no estado de natureza já existia a ideia de propriedade privada, colocando-a no mesmo patamar do direito à vida e à liberdade, como um direito natural. Ele fez algo mais que mirabolante para justificar a desigualdade social e consolidava a justificativa teórica para a prática capitalista, fundamentalmente ancorada na legitimação e legalização da propriedade privada, seja da terra, seja de pessoas, principalmente de negros e indígenas, ao justificar também a ideia de raça.

Esses princípios fundam uma modernidade estadolátrica, capitalista, racista e com forte apoio do igrejismo e do militarismo. Em suma, legitimaram uma sociedade absolutamente hierarquizada, desigual, racista, porque indígenas, negros e seus descendentes ocupam os piores empregos, majoritariamente ocupam as prisões, são os que mais têm dificuldades em comer, em viver bem e ter acessos a direitos.

Em praticamente todos os países da América Latina no Peru, no México, na Colômbia, no Equador, na Venezuela, os bairros nobres são habitados por brancos e os bairros populares são habitados por indígenas, negros e seus descendentes. Isso é garantido pelo quê? A constituição garante essa reprodução social amplamente desigual e racista? Se quiserem dizer que foi o Estado, fiquem à vontade. Foi o Estado que garantiu isso ao longo dos séculos. Hodiernamente, nos bairros nobres, o Estado está presente garantindo saneamento básico, boas escolas e hospitais, pavimentação de ruas e estradas, embelezamento dos jardins e das praças etc. Nos bairros populares, o Estado está presente em forma de repressão por meio da presença policial.

NOSSOS DESAFIOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS: COMBATER O HISTÓRICÍDIO E O EPISTEMICÍDIO

Nossos desafios teórico-metodológicos devem estar baseados em combater tanto o historicídio, quanto o epistemicídio, que, quando não ignoram por completo, tratam como absolutamente nefastos tudo que diz respeito à História e às teorias dos anarquistas, dos indígenas, dos negros, das mulheres independentes e da comunidade LGBT. Em suma, entram nesse rol todos aqueles que não pedem benção todos os dias ao seu patrão branco. Podemos chamar essas práticas em seu conjunto por epistemicídio/historicídio. Elas estão baseadas na ideia da colonialidade do saber e no racismo epistêmico.

Nesse diapasão, se queremos emancipação, temos que nos desvencilhar dos conceitos acadêmicos modernos, liberais e conservadores existentes. Fomos educados, nas escolas, nas igrejas, nos quartéis, por meio das televisões, para amar e temer o Estado, as autoridades, os governantes, o pai, o padre, o pastor, o policial. O princípio hobbesiano está aqui encrustado.

A IMPORTÂNCIA DA FILOSOFIA ANARQUISTA PARA LIBERTAÇÃO DOS COLONIZADOS

Se almejamos ser livres, a filosofia anarquista pode ajudar demais aos nossos propósitos, pois não há nada mais importante para ela do que a liberdade, e não é a liberdade dos liberais, exclusiva para o mercado, típica para os proprietários.A liberdade do anarquista se expressa da seguinte maneira, segundo Bakunin: se há um único escravo na sociedade, essa sociedade não é livre, porque a liberdade do outro é a extensão de minha liberdade. Só sou livre se vivo entre iguais, e iguais livres. Essa liberdade, para Kropotkin, Emma Goldman, Malatesta, Lucy Parsons e outros, só se concretiza quando nos autogovernamos. Não existe liberdade se tenho que obedecer à lei criada por aqueles que estão no congresso, que estão assinando, agora, a destruição da floresta Amazônica. Nenhuma filosofia política moderna, eurocentrada, defendeu os princípios do autogoverno com liberdade. Por outro lado, é possível encontrar essa defesa nas filosofias indígenas, africanas, asiáticas, anarquistas. O colonialismo expandido pelos Estados europeus que subordinou os outros povos negou-lhes a possibilidade do autogoverno e lhes impôs um poder estatal, centralizado, patriarcal, autoritário e racista.

Desde o século XIX, os proprietários defendem que os trabalhadores não podem ter direito a voto, muito menos as mulheres, porque não sabem pensar direito, então os homens, proprietários e ricos deveriam governar. A crítica a essa perspectiva supostamente democrática é profundamente anarquista, porque eu não preciso que outro me represente, eu posso me representar junto com meu coletivo, temos a capacidade de raciocinar e nos autogovernar.[3] Novamente, esse é um princípio anti-Estado, anti-representação, anti-autoritário, anti-patriarcal, anti-hierárquico, anti-capitalista.

O que diferencia uma filosofia anarquista de outras filosofias? Todas as outras, inclusive a marxista, acreditam e defendem a ideia da representação. Aliás, foi isso que Marx fez no século XIX. Enquanto os anarquistas defendiam o federalismo, ou seja, a autonomia das partes participantes, da Associação Internacional dos Trabalhadores, Marx queria a centralização desse poder num Comitê Central, que ditaria a todas as outras seções o que deveria ser feito. É o princípio da hierarquia, da centralização de poder. Por isso, os marxistas não criticam o Estado. No fundo, eles concordam com os princípios liberais, hobbesianos. É tanta centralização que os marxistas se reivindicam seguidores das ideias de Marx, seguem as ideias de uma pessoa. Já o anarquismo, foi e ainda é construído por diversas pessoas, homens e mulheres, pessoas trans, brancos e pretos etc.

PRINCÍPIOS ANARQUISTAS

Em “Deus e o Estado”, Bakunin não se diz contra todo tipo de autoridade. Ele diz: se eu estou doente, recorrerei a um médico para que me diga quais os meus problemas. Eu ouvirei o que o médico tem a me dizer, mas também irei a outro médico. E depois eu escolho, em minha liberdade, aquilo que me faz mais sentido. Bakunin respeita a autoridade do médico, mas a última palavra é a dele. Liberdade é respeitar, ouvir, e tomar uma decisão. Ele não é contra a autoridade em si, mas contra a autoridade que não pode ser contestada, e o Estado representa isso.

Ninguém pode viver sem pagar impostos ao Estado. A polícia mata muita gente nas favelas, periferias, mata negros e indígenas. Então, não quero pagar imposto porque esse dinheiro vai financiar esse genocídio que está ocorrendo há 500 anos – mas não posso, sou obrigado a pagar imposto para financiar o armamento pesado, para os policiais andarem de carro Toyota com ar-condicionado, enquanto falta giz na escola pública. É a prioridade do Estado, porque, se você fizer um histórico do Estado, seu princípio fundador é o militarismo e o igrejismo. Para que os trabalhadores não se rebelem contra a desigualdade social, para que as mulheres não se rebelem contra a desigualdade de salários, de oportunidades, para que uma mulher negra, que está no pólo social mais explorado e excluído, possa se rebelar, existe o Estado.

Outro princípio fundamental do anarquismo é a horizontalidade, que significa que estamos todos no mesmo patamar. Não há hierarquia social aqui. A base dessa horizontalidade é a autogestão, ligada ao coletivismo. Para o anarquismo, de modo geral, ninguém consegue viver sozinho. Deve haver comum acordo com outros. Todos esses princípios estão conectados e levam à emancipação social, que significa liberdade e igualdade.

Vejo alguns colegas falando que, com o fim da escravidão, os escravos se emanciparam. Se emanciparam de onde? Como diz o Samba da Mangueira de 1988, “a favela é a nova senzala”. O negro continua sendo explorado, excluído, exterminado. Não tem mais o nome de escravidão, e sim de democracia, mas os princípios do colonialismo permanecem.

SOBRE ANARCO-CAPITALISMO

Se amanhã eu quiser dizer que a água é sólida, que o mar é terra, se eu criar o conceito de “líquido sólido”, eu posso. Cada um pode criar o que quiser. Mas o que é necessário para nós que estamos na academia é o cuidado para não juntarmos coisas absolutamente opostas que não têm nada a ver uma com a outra, em que, quando se faz a argumentação de determinado ponto, nega-se o outro ponto. São absolutamente antagônicos. Todo anarquista é socialista. Se você entende socialismo como oposição ao capitalismo, é uma aberração utilizar os termos anarquista e capitalista para expressar um único produto. É uma incongruência total e absoluta.

A primeira pessoa que se declarou anarquista foi Proudhon, que era mutualista, socialista. Com isso, se construiu uma ideia anti-estatal e anticapitalista. O capitalismo, do ponto de vista histórico, é um projeto econômico da modernidade, que encampa sua melhor relação com o liberalismo, que tem por princípio a ideia de Estado mínimo, ou seja, um Estado que não garantirá direito aos trabalhadores, que não intervirá na economia, que não criará instituições sociais públicas. Ele apenas garantirá a segurança. Portanto, sua base é o militarismo, repressão, prisão, polícia, arma, para garantir a segurança dos proprietários. Todos os não proprietários devem ser vigiados, controlados, pelo Estado, pois são a princípio potenciais inimigos do Estado, ou melhor, inimigos dos proprietários, defendidos pelo Estado.

Robert Nozick com seu livro “Estado, Anarquia e Utopia” se transformou em um clássico da teoria liberal. Ele defendeu a ideia de Estado mínimo. Para ele, era necessário que o Estado fosse mínimo, que abandonasse a perspectiva de garantia de direitos. Tal como Hobbes, Locke, e os teóricos chamados jusnaturalistas, Nozick reconstruiu uma história de humanidade a partir de questões hipotéticas, assim disse ele: primeiro, existia anarquia, sem Estado; depois, surgiu o Estado ultra-mínimo, em que os proprietários contratavam guardas privados, e essa associação entre proprietários com seguranças individuais formavam o Estado ultra-mínimo; esse Estado evoluiu para englobar a fronteira nacional, e deveria tomar conta de todo o território. Tudo isso foi invenção da cabeça dele. Tanto ele como os autores clássicos utilizam como subterfúgio o abandono dos fatos, da história, para poder convencer o leitor de suas teses. Para Nozick, esse Estado mínimo se justificava, algo além disso não se justificava. O que tenho percebido é que os liberais, ultra-liberais, defensores do Estado ultra-mínimo, que se dizem anarco-capitalistas, querem justamente isso: a imposição do Estado ultra-mínimo, em que a segurança será privada, ou, no máximo, um Estado mínimo em que haverá uma segurança única que garantirá o interesse dos proprietários. É um Estado que visa garantir os interesses do mercado, dos capitalistas, individuais e que não se compromete em combater as desigualdades, a exploração, a miséria, o assassinato, a prisão, enquanto o anarquismo se preocupa com isso. Então, é uma estúpida apropriação do termo “anarquista” associá-lo com o termo “capitalista”.

No final da década de ’90, houve o movimento de ação global dos povos. Esse movimento foi muito forte, inclusive na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá. Chamou-se também de Movimento Anti-Globalização. Foi quando surgiram os Black Blocks. A ideia do anarquismo foi muito difundida. O anarcocapitalismo se aproveita da difusão do anarquismo e se apropria do conceito para negá-lo. Nos protestos de2013 no Brasil, o símbolo do anarquismo estava em todos os lugares. A própria formação dos Black Blocks de enfrentamento da polícia, de criticar o Estado, o capitalismo, as desigualdades e exigir o passe-livre foi resultado da sua orientação anarquista. Para se apropriar desta luta e negá-la, seus opositores difundiram a ideia de anarcocapitalismo.

A questão mais interessante do anarquismo é não apresentar propostas prontas. Outras ideologias fazem isso o tempo inteiro. Os princípios trazidos pelo anarquismo são a ideia de liberdade, igualdade, autogestão, etc. Como a autogestão será construída depende de quem estiver fazendo a ação direta. Os próprios interessados devem discutir coletivamente como fazer e como construir seus sonhos. Por exemplo, antes do protesto de 2013, vinham os militantes dos partidos políticos em cima dos carros-de-som de tipo trio elétrico, dizendo para as massas o que deveriam fazer. Em 2013, os manifestantes rejeitaram os carros-de-som. Decidiram fazer manifestação horizontal e autogestionária. Esse é o símbolo da mudança.

Referências

ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2001.

DE MORAES, Wallace S. Teses da teoria política anarco-comunista – reflexões a partir do pensamento de Kropotkin. In De Moraes e Jordan (org.) Teoria Política Anarquista e Libertária.

______________. Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista: um estudo da teoria neoliberal de Robert Nozick. In Curso de Ciência Política: grandes autores do pensamento político moderno e contemporâneo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril 2016.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. (Os Pensadores). Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3ª ed.. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

KROPOTKIN, P. (2005), Palavras de um revoltado. São Paulo: editora Imaginário.

LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo(Os Pensadores). Tradução de AnoarAiex e E. Jacy Monteiro. 3ª ed.. São Paulo: Abril Cultural, 1983.


[1] Transcrição de Cello Latini Pfeil da live “Anarquismo, Geografia Política e a Crise do Brasil Contemporâneo” do professor Wallace de Moraes, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OlAngCa8Z_o&t=1810s

[2] A própria formação dos quilombos pode ser melhor entendida a partir da lente teórica anarquista. Conceitos como de ação direta, autogoverno, liberdade, igualdade, revolução social. nos ajudam a melhor entender as práticas dos quilombolas.

[3]David Graeber diz que o modelo que se chama hoje de democracia é sustentado pelo princípio aristocrático de representação.

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