A INDEPENDÊNCIA DOS NEGROS E A PERSISTÊNCIA DO RACISMO NO BRASIL

A INDEPENDÊNCIA DOS NEGROS E A PERSISTÊNCIA DO RACISMO NO BRASIL

WALLACE DE MORAES – 

Prof. Dpto de Ciência Política da UFRJ

Rio de Janeiro, 06 de setembro de 2021

Em meio às comemorações da suposta independência do Brasil, alguns governantes clamaram aos seus apoiadores para atentar contra as instituições liberais, não para democratizá-las, mas para tutelá-las, subordiná-las. Ação absolutamente nefasta. Neste contexto, quero discorrer sobre um assunto correlato: a persistência de racismo e discriminações, mesmo em universidades não autoritárias, e a luta pela independência dos negros, que ainda não aconteceu.

Enquanto um dos poucos docentes negros da maior universidade federal desse país (UFRJ), único no meu departamento, já recebi vários relatos de alunos negros que sofrem tratamento diferenciado por professores brancos. Assim, sempre os estimulei a procurar seus direitos, porém muitos relutam, temem por represálias, ficam preocupados com suas notas, sua própria carreira e desistem. Agem dessa maneira, pois sabem que existe na comunidade acadêmica um profundo desconhecimento sobre o significado de racismo e suas práticas correspondentes.

No último dia 11 de agosto, chegou a minha vez e na forma mais explícita possível. Em reunião pública departamental, um dos professores proferiu ataques profundos a minha personalidade, desqualificando-me como “conflituoso”, dentre outras injúrias, inclusive alegando, ainda, que eu me vitimizava por ser negro. Não adiantou outros colegas saírem em minha defesa e rechaçarem com toda força os atos discriminatórios. Os ataques proferidos tinham por objetivo justificar que o meu nome não compusesse a banca examinadora do concurso para provimento de novos professores para o departamento. Não obstante, esses ataques expressam muito mais do que isso.

O professor está em estágio probatório. Mas porque se sente com total confiança para agir dessa maneira em relação a um professor associado II? Uma das pistas para entendermos é o fato de o professor atacado ser negro. Afinal, no imaginário social, negros são inferiores, são descendentes de escravizados, são os mais pobres, menos inteligentes e “conflituosos” (quando lutam por igual tratamento com relação aos brancos).

Em função dos seus laços político-partidários, o professor recém-chegado à universidade, antes de terminar seu estágio probatório, já compunha a direção da ADUFRJ (Associação dos Docentes da UFRJ), fez parte do conselho da direção do IFCS, e ocupa cargo de confiança junto à reitoria da UFRJ. Certamente, suas relações políticas também colaboraram para deixá-lo à vontade para cometer atos discriminatórios contra colegas com muito mais tempo de carreira. 

Depois de ciente dos fatos, a Congregação do IFCS por unanimidade anulou a banca que me excluía e aprovou uma nota de desagravo em meu favor. 

A UFRJ abriu uma sindicância, mas o manteve em cargo de confiança junto à reitoria. A ADUFRJ soltou uma nota dizendo que havia “controvérsias”. O próprio professor divulgou um “pronunciamento” que supostamente pede desculpas a mim pelo ocorrido, e só o fez depois de duas semanas de intensa pressão realizada pelos movimentos antirracistas. Emblematicamente, a nota não foi enviada para nenhum dos meus endereços de email e WhatsApp, que ele possui. Também não soube que ele a publicou em quaisquer das suas redes sociais. Aparentemente, foi uma nota destinada somente para o coletivo de docentes negras e negros da UFRJ que me apoiou desde o início. Seu pedido de desculpas, envergonhado e não amplamente divulgado, portanto, é daqueles que justifica o ditado: “a emenda saiu pior do que o soneto”. Não aparenta nenhuma sinceridade. Não desdiz nenhuma das ofensas que proferiu sobre minha personalidade. Sua carta induz a entender que por viver em uma sociedade racista é comum que se estabeleça atos racistas. Isso não pode ser justificativa. Tive dezenas de amigos brancos que nunca me humilharam e sempre me respeitaram como sou. Embora, existam outros que ainda estão com a mente colonizada e que se julgam no dever de me menosprezar. O “pronunciamento”, como ele denominou sua carta, não somente não expressa um pedido de desculpas genuíno como também é péssimo em seu conteúdo com relação ao tema do racismo. Diz ele: “parte da esquerda (…) necessita cada vez mais compreender e assimilar a EMERGÊNCIA de NOVAS SUBJETIVIDADES, agendas e pautas que EMERGEM do movimento antirracista (…)” Não sei se ele recebeu algum assessoramento para escrever essas palavras, todavia elas demonstram um profundo desconhecimento do quanto o racismo impera no Brasil desde 1500 e, portanto, não emergiu agora, muito menos advém de “novas subjetividades”. Só demonstra o seu lugar de fala, de homem branco, que não compreende sobre racismo, entendendo-o como subjetividades, que são novas, pasmem, e do outro. Assim, ele não encara o racismo como um problema seu, é do outro, é externo, da sociedade, é histórico, e, por isso, os brancos o cometem e devem ser inocentados, como ele. 

É deveras óbvio para qualquer corpo negro e estudiosos da História que os afrodescendentes sofrem da chaga do racismo desde quando foram sequestrados em massa da África no séc. XVI. É verdade que o tema do racismo nunca alcançou status central na pauta brasileira. Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, movimento negro unificado e tantas outras e outros tiveram que impor essa pauta, mas com muita resistência dos intelectuais eurocentrados. Não obstante, nunca é tarde para aprender que a relação de opressão não se resume apenas à classe, mas passa por raça, gênero e cis-heteronormatividade. Por isso, as feministas negras criaram o conceito de interseccionalidade.

Os coletivos de docentes, servidores e alunos negras e negros da UFRJ esperam ansiosamente os resultados da sindicância que certamente entrará para a História como parte fundamental da luta antirracista no Brasil para o bem ou para o mal. 

Se um negro que é doutor e professor da maior universidade federal desse país sofre ainda de racismo por seus pares em reunião pública departamental, imaginemos os negros mais vulneráveis. 

Por fim, existem muitos independentes nesse país, mas certamente, quase nenhum deles possui a pela negra. Na semana da independência do Brasil, reafirmamos que os negros ainda precisam lutar muito por ela, pois para tal, é necessário ter trabalho com salários decentes, terras para plantar e colher, casas dignas, comida no prato, ser respeitado. É imperativo que sejam tratados como humanos de iguais direitos. 

Continuaremos lutando contra o racismo, por igualdade, liberdade e clamaremos por mais democracia, para que efetivamente tenhamos nossa independência, e deve estar longe de quaisquer arroubos autoritários e discriminatórios de onde quer que se origine.

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