“LIBERALISMO E RACISMO PARTE II”

Aula dia 19 de setembro de 2020[1]

Autor: Wallace de Moraes

Edição/transcrição: Cello Latini

Eu quero voltar ao ponto sobre o racismo e o liberalismo, e trouxe comigo alguns textos: As Paixões e os Interesses, de Hirschman, La democracia liberal y su época e A teoria política do individualismo possessivo, de Macpherson. Este último é da época em que eu estava na graduação no IFCS, e um professor de filosofia, o Franklin Trein, com quem eu estava tendo aula, me indicou esse livro. Foi muito legal para mim, porque eu me identifiquei muito com essa perspectiva do Macpherson. Mas a fonte principal de todas essas questões que eu vou tratar com vocês a partir de agora vem do Dominico Losurdo. Chama-se Contra-História do Liberalismo, um livro muito bom. Losurdo é um italiano e um crítico marxista. Tenho algumas discordâncias com ele, mas nessa perspectiva ele serve como uma excelente fonte.

                Vamos às nossas teses.

George Washington, nos discursos oficiais, declarou que levaria “as bênçãos da civilização” para a “raça não iluminada”, todavia, mostra Losurdo (2015), nas cartas particulares usava as palavras mais intimamente reais, como “animais selvagens da floresta”. Então vejam – o George Washington, que é uma grande referência política nos Estados Unidos, foi o primeiro presidente do país, tratava os indígenas como selvagens. Esses indígenas eram classificados como subumanos, para esses pensadores, para esses governantes.

Vejamos o que dizia Benjamin Franklin, “se faz parte dos desígnios da Providência extirpar esses selvagens para abrir espaço aos cultivadores da terra, parece-me oportuno que o rum seja o instrumento apropriado. Ele já aniquilou todas as tribos que antes habitavam a costa” (LOSURDO, 2015: 30). A distribuição do rum para aniquilar os indígenas foi uma forma de facilitar o extermínio indígena. Eu não sei se a mesma coisa foi feita com a cachaça no Brasil, se, em alguma medida, drogas foram utilizadas para exterminar, mas eu não sou estudioso desse processo, então fica aí um ponto para pensarmos. A difusão de rum que, no caso, Benjamin Franklin defende abertamente, para exterminar os indígenas é, em certa medida, semelhante ao que aconteceu aqui nas Américas, em diferentes contextos históricos.

                Já na perspectiva de Hugo Grotius:

E se ele é dedicado a um espírito mau, é falso e mentiroso e significa um crime de rebelião; uma vez que a honra devida ao Rei não apenas lhe é subtraída, mas é inclusive transferida para um trânsfuga e inimigo. (…) tipo de culto que não convém a uma inteligência boa e honesta, cujo tributo é feito por meio de sacrifícios humanos, corridas de homens nus nos templos, jogos e danças carregadas de obscenidades, que até hoje se observam nos povos da América e da África ainda nas trevas do paganismo.

Estúpida é a convicção pela qual se imagina que o Deus bondoso não vai se vingar disso, pois, isso seria contrário à bondade. De fato, a clemência para ser justa tem limites, e onde as maldades passam da medida, a justiça emana quase necessariamente a pena.

A guerra mais justa é aquela que se trava contra as bestas ferozes e, depois, a que se faz contra homens semelhantes às bestas ferozes.

                Grotius, a partir da perspectiva que estou chamando de igrejista, está evocando Deus, para matar negros e indígenas. O cristianismo e o igrejismo foram utilizados desta maneira. É importante dizer isso. Você pode ser cristão, pode ter bondade em seu coração, pode ter amor ao próximo, são os princípios que acho que Jesus Cristo deixou, de amor ao próximo, de repartir o pão, mas você não pode negar que, do ponto de vista histórico, as igrejas justificaram o poder e a escravização de negros e indígenas.

                Para Stuart Mill, no século XIX, um grande clássico do pensamento liberal, um dos mais lidos e difundidos em nossas universidades, a escravidão se justificava pela inferioridade da raça negra que devia ser guiada para a civilização pelos colonizadores. Assim, o liberal inglês justificou o “despotismo” dos proprietários europeus sobre as raças ainda em “menoridade”, obrigadas a observar uma obediência absoluta, de modo que possam ser postas no caminho do progresso (LOSURDO, 2015: 19). O autor afirma que a escravidão às vezes é uma passagem obrigatória para conduzi-las ao trabalho e torná-las úteis à civilização e ao progresso (LOSURDO, 2015: 19). Para Mill, a escravidão deve ser temporária, durando até as “raças inferiores” aprenderem a lógica do trabalho capitalista. Stuart Mill, já no século XIX – não estou falando de Locke no século XVII – estava defendendo, ainda, esse processo de escravidão e que essas raças negras e indígenas deviam alcançar o “progresso” da raça branca, deviam ser guiadas, tuteladas. É isso que o pensamento liberal argumenta, justifica, e talvez você não soubesse.

                Montesquieu:

Se esta nação estabelecesse colônias longínquas, o faria para ampliar ainda mais o próprio comércio do que o próprio domínio. Uma vez que se deseja estabelecer em outros lugares o que está já consolidado entre nós, ela daria aos povos das colônias a sua mesma forma de governo, e já que esse governo carrega consigo a prosperidade, veríamos a formação de grandes povos até nas florestas destinadas para a sua habitação. (MONTESQUIEU, XIX, 27)

Ou seja, de novo, tutela, de novo, justificativa do domínio do europeu sobre o colonizado. Essa é a colonialidade do poder, realizada por Montesquieu, outro clássico do pensamento moderno. Mas esses argumentos ninguém fala para você; só falam que Montesquieu tem a proposta de defesa de separação dos poderes, uma “democratização” do Estado – democratização do Estado, que na verdade ocorre apenas entre as elites, sugerida pelo Barão de Montesquieu!

No mesmo diapasão, está a obra de Alexis de Tocqueville, que escreveu um clássico do pensamento moderno: Democracia na América. Ele visitou os Estados Unidos e falou que lá a democracia era perfeita, para onde todas as sociedades deveriam caminhar. Na sua obra, ele reconhece como os indígenas são exterminados e como os negros são submetidos a um regime escravocrata impiedoso. Todavia, nada disso o impede de celebrar a América como o único país no mundo em que vigora a democracia “viva, ativa, triunfante”.

Como assim? Como se têm pessoas escravizadas, como se tem extermínio de indígenas, e você diz que aquilo é uma democracia perfeita, ativa, triunfante?

Esse autor é tratado como um grande clássico nas nossas universidades. Poucos fazem essa crítica. É necessário fazer. Contem comigo para isso, espero contar com você também, para podermos ampliar esse movimento que busque descolonizar as nossas universidades, do Brasil, da América Latina, e do mundo ocidental.

                Continuemos. Os “pais fundadores” dos EUA, George Washington, James Madison e Thomas Jefferson, eram todos proprietários de escravos.

De acordo com Losurdo, Hannah Arendt, em seu livro Da Revolução, minimizou a questão da escravidão como algo natural do seu tempo: “para os europeus, a escravidão não fazia parte da questão social, como não fazia parte para os americanos”. É muito comum que se diga isso. E eu tenho chateação, para usar um termo bem ameno, com esse tipo de coisa. As pessoas, desavergonhadamente, descaradamente, dizem que as escravidões, em diversos momentos históricos, eram instituições reconhecidas pelo seu tempo. E, portanto, seria um anacronismo fazer a crítica. Eu pergunto para você? Pense comigo: será que o escravizado foi consultado sobre isso? Será que o escravizado estava feliz com aquela condição dele de escravo? Obviamente que não! Vejam: aqui, de novo, está uma perspectiva de olhar de cima para baixo, olhar do branco – que não é escravizado –, do governante branco, do governante político, econômico, sociocultural, das elites, para quem isso era natural. Mas para o escravizado, para o explorado, para o humilhado, para o assassinado, para o chicoteado, não! Não pode ser tido como natural. Veja, hoje, por exemplo, negros e indígenas são exterminados nas favelas e florestas desse país. Daqui a cinquenta anos, vão dizer: ah, isso aqui era normal. Normal não! Nós estamos aqui criticando isso. Nós, obviamente, não estamos nos grandes meios de comunicação, nem vamos chegar nunca. Aliás, isso aqui é um canal, é uma forma de tentar dialogar com vocês, do ponto de vista teórico, epistemológico, filosófico, mas também de uma intervenção social. Nós não vamos ocupar os grandes meios de comunicação, não vão deixar que esse canal cresça, porque o que é dito aqui não atende aos interesses dessas classes dominantes.

Não dá para dizer, ou para ignorar, ou para tentar legitimar, justificar a escravidão porque naquela época era comum. Faça-me o favor, me respeite. Respeite meu raciocínio. Respeite essa minha careca aqui! Respeite minha cor da noite. Como diz Jorge Aragão, “temos a cor da noite, filhos de todo açoite, fato real da nossa história…”.

Referências

HIRSCHMAN, Albert O. As paixões e os interesses – argumentos políticos a favor do capitalismo antes do seu triunfo. Rio de Janeiro: Record, 2002.

LOSURDO, Domenico. Contra-História do liberalismo. Aparecida: Ideias & Letras, 2015.

MACPHERSON, C.B. A Democracia Liberal – origens e evolução. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

MILL, J. S. Considerations on Representative Government. New york: the Bobbs-Merril Company, 1958.

MONTESQUIEU. O Espírito das leis. São Paulo: Abril (coleção Os Pensadores), 1973.


[1]Edição/transcrição de Cello Latini da vídeo/aula de Wallace de Moraes no canal do CPDEL do youtube: https://www.youtube.com/watch?v=NAGNy5L49EI

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