“APRESENTAÇÃO DO PENSAMENTO DECOLONIAL E LIBERTÁRIO”

Aula 25 de agosto 2020

Autor: Wallace de Moraes

Edição/transcrição: Cello Latini

Essa disciplina tem um objetivo central, qual seja, trazer uma perspectiva decolonial, uma perspectiva, sobretudo, anti-racista. Mas não é um anti-racismo qualquer. É um anti-racismo libertário. Então, veja, o que eu estou querendo dizer é que existem diferentes formas de luta anti-racista. O que vou trazer para vocês aqui, a priori, é totalmente excluído das nossas universidades brasileiras, latino-americanas e ocidentalizadas. Nós temos um saber universitário que estou chamando de “colonizado”, absolutamente colonizado. O que significa um saber colonizado? É um saber eurocentrado, ocidentalizado, racista. Esse saber é difundido em todas as universidades do Brasil, inclusive na nossa. Então, estou propondo um curso que vá na contramão desse processo. Enquanto professor negro e de origem popular, é meu dever fazer isso – e fico muito feliz em ver diversos alunos negros aqui –, para que o negro e o indígena e o branco pobre popular possam se sentir, em alguma medida, com alguma referência, com algo que lhes diga respeito, pelo menos. Por que estudar, no caso da Ciência Política, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, Montesquieu, Tocqueville, Hegel, Marx, John Rawls, Robert Nozick, e por aí vai, todos autores brancos, estadolátricos e ocidentalizados? Não faz sentido!

Eu quero tratar aqui com vocês de diversos pontos, diversas questões, diversos temas que pouco são discutidos na universidade e, quando são discutidos, são discutidos muito enviesadamente, na melhor das hipóteses em uma crítica moderna, eurocentrada, à parte do eurocentrismo, que não significa, portanto, uma crítica decolonial. E uma crítica decolonial é realizada, a priori, desde a parte colonizada do mundo, da América Latina, em particular, do Brasil. Obviamente, ao longo do curso, apresentarei os conceitos que moldam nossa disciplina. Estou tentando contribuir com um saber, com uma forma de interpretar o mundo, que é decolonial e libertária.

A metodologia de minhas aulas não é eurocentrada, caracterizada por hierarquia, por autoritarismo, por centralismo, pela ideia de autoridade, que é tipicamente moderna. O que significa isso? Significa que o professor é o centro do debate, ele quer falar e o aluno escuta. Eu estou querendo discutir com vocês e quero ouvi-los. E, aliás, quero começar a ouvi-los hoje. Se eu estivesse em sala de aula, nós estaríamos agora em círculo, para estimular esse debate, e o círculo é a forma como os indígenas conversam, se organizam, as diversas sociedades africanas se organizavam em círculos, e também é uma característica do pensamento anarquista, sem dúvida com a ideia de horizontalidade e com a descentralização do poder.

Combater o triplo epistemicídio

Já quero adiantar para vocês que meu curso tem o objetivo principal de atacar o que chamo de triplo epistemicídio. Além de tratar do triplo epistemicídio, tratarei de quatro conceitos fundamentais que dão suporte às nossas argumentações, quais sejam, epistemicídio, racismo epistêmico, colonialidade do saber e historicídio. Esse triplo epistemicídio tem a base de exclusão do pensamento negro, de negros e negras, exclusão do pensamento indígena e do pensamento anarquista das universidades. Tenho quase certeza de que vocês, do ensino como um todo, não estudaram autores negros, indígenas e anarquistas no Ensino Médio. Na universidade de Ciências Sociais, na maior universidade do Brasil, tenho quase certeza de que vocês, se estudaram esses autores, eles foram passados de forma muito unilateral para vocês. E é isso que estou chamando de triplo epistemicídio, que exclui do saber, da discussão, do debate os pensamentos negro, indígena e anarquista. Em comum, esses pensamentos ou essas filosofias, essas perspectivas teóricas, quando cientes do seu lugar, atentam contra a modernidade e contra a colonialidade do poder. Em seu conjunto – e quando falo em conjunto estou pensando em Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, Krenak, Munduruku, Kopenawa, Bakunin, Kropotkin, Emma Goldman, Catherine Walsh, Maria Lugones, Ramón Grosfoguel –, são autores que atentam contra os princípios da modernidade.

Essa é uma aula para desconstrução da modernidade e da colonialidade. Desconstrução epistemológica. Desconstrução da colonialidade do saber. Eu costumo chamar de desintoxicação epistêmica. Nós fomos treinados a pensar do ponto de vista europeu. Quero que vocês entendam uma crítica desse saber ocidentalizado.

Modernidade e Colonialismo

Modernidade é aquilo que foi construído a partir da conquista das Américas, quando os europeus chegaram às Américas e tomaram, exterminaram, praticaram genocídio contra os povos que aqui estavam, os povos indígenas, e sequestraram negros da África e os trouxeram para cá para produzirem riqueza aos governantes brancos. A partir daí, começa a ideia de modernidade. Esse pensamento tem início em 1492 e o principal fator que o estrutura é a ideia de racismo. Primeiro, é a criação da ideia de raça. Foi nesse momento que foi criada a ideia de raça e, consequentemente, veio o racismo. Porque, até então, o europeu não se via enquanto branco. Não existia isso. “Ele é indígena, ele é negro” – não existia isso. Havia mais de mil povos indígenas falando mais de mil línguas diferentes, aqui no Brasil, e foram exterminados. Nenhum indígena se reconhecia enquanto indígena, nenhum negro se reconhecia enquanto negro, nenhum branco se reconhecia enquanto branco. Para Enrique Dussel, Grosfoguel, Catherine Walsh, Maldonado Torres, a identidade indígena é a primeira identidade moderna. O que sustentará a modernidade surgiu a partir de uma dúvida: esse indígena é humano ou não é humano? Esse negro é humano ou não é humano? Essa dúvida sobre a humanidade do outro é o que estruturou a ideia de modernidade e de colonialidade. A modernidade surge com outro conceito: de colonialismo, que significa a conquista das Américas e da África, sob a ideia de racismo. O Estado moderno europeu – por isso nossa teoria é libertária, no sentido anarquista mesmo – foi criado para escravizar, matar, oprimir, extrair riquezas de negros e indígenas, para favorecer os governantes brancos europeus.

O capitalismo é outra instituição moderna. Para Marx, o capitalismo foi criado a partir da extração de mais-valia do campesinato europeu. Ele esqueceu o colonialismo. Mas ele não podia falar do colonialismo, porque estava na Europa. O capitalismo foi estruturado com o trabalho escravo de negros e indígenas. Foi o roubo das riquezas das Américas com o trabalho escravo que garantiu o domínio europeu no mundo inteiro. A Europa não era nada até a conquista das Américas. Não era nem centro do mundo. Indico para vocês Enrique Dussel para estudar.

Para fechar, o que estrutura a modernidade e a colonialidade são o racismo, que perpassa tudo, que colocou em negros e indígenas a ideia de subumanos; e o Estado, com militares – já dizia Fanon: é o militar que dava tapa na cara do colonizado, é o militar a estrutura final que oprimia esse negro, essa negra, esse indígena, nossos antepassados, nossos ancestrais. Esse militar era a ponta de lança desse Estado que nasceu, por essência, militarista. Ser decolonial, ciente de seu lugar de fala e de sua história, tem que ser anti-estatal. Além de saber fazer a crítica mais profunda ao Estado, que nasceu para nos escravizar, deve fazer a crítica à prisão, à polícia, ao igrejismo, que justificava tudo isso. Racismo, Estado, prisão, militarismo, igrejismo e capitalismo constituíram a modernidade, que permanece com seus princípios até os dias de hoje. Então, a luta decolonial é uma luta histórica anti-moderna.

O negro, a negra, o indígena são aceitos e muito bem-vindos desde que peçam a bênção todos os dias ao seu patrão branco governante. Se eles se subordinarem perfeitamente e ficarem felizes com as explorações que lhes são realizadas todos os dias, vão dizer que “esse negro é bom, ele é gente boa, esse negro é ótimo! É maravilhoso!”. Por que ele é maravilhoso?Porque está amplamente subordinado a todos os princípios modernos. E se legitimá-los, ele é melhor ainda.

O colonialismo é um processo que tem início com a conquista das Américas e tem, a princípio, fim, com as chamadas independências ocorridas nas América Latina, no século XIX, e as independências, majoritariamente no século XX, na África.

O que é uma perspectiva decolonial libertária?

Por que se fala de decolonial e não de anti-colonial? Há uma diferença entre colonialismo e colonialidade. O termo de colonialidade significa dizer que há uma continuidade dos princípios do colonialismo, isto é, a ideia de racismo não acabou com o fim do colonialismo. A colonialidade significa que há uma permanência dos princípios colonialistas, coloniais, que subordinavam, que menosprezavam, que discriminavam e que matavam negros e indígenas, e que continuam matando até hoje nas periferias, em nossas favelas e florestas. Quando os portugueses chegavam aqui, quando os espanhóis chegavam à América Inglesa, a primeira coisa que se fazia era instaurar uma igreja e uma prisão. A prisão é uma instituição européia moderna que foi criada para prender negros e indígenas insubmissos. Por isso, eu sou abolicionista penal. Na minha perspectiva, casando decolonialidade com uma perspectiva libertária, você tem que ser abolicionista penal. O que significa isso? É ter a maior crítica sobre as prisões e saber que as prisões foram criadas para nos prender.

No fundo, todos nós somos treinados a acreditar que precisamos de governo. Somos treinados a acreditar que necessitamos de tutela. Somos treinados a acreditar que precisamos de uma autoridade para nos guiar. Isso é o princípio da negação da liberdade. É o princípio hobbesiano segundo o qual a liberdade é maléfica, em que o fundamental é ter a garantia da liberdade, por isso ele defende o Leviatã.Sem Estado, os homens se matariam uns aos outros, seria uma guerra de todos contra todos. Isso é o princípio máximo do hegelianismo, que tanto fundou para a direita como para a esquerda. O marxismo é herdeiro do hegelianismo, que não consegue pensar para além do Estado. E o Estado significa governo, e governo foi realizado e criado para nos matar.

                Há a possibilidade de nos autogovernarmos? Nunca nos foi passado isso. A escola e a universidade, com todos esses autoreseurocentrados, ocidentalizados, estadolátricos e racistas, eles nos induzem, nos dizem que é impossível viver sem o Estado, que é impossível ser autogovernado. É uma camisa de força que nos é imposta. Por isso, sempre falo para meus alunos: o aluno que entra em Ciências Sociais acha que vai aprender e se libertar, mas ele sai daqui mais conservador do que entra, com essa literatura que vocês lêem quando entram aqui, a tendência é saírem mais conservadores do que quando entram. Se você não fizer uma leitura por fora, sairá daqui mais conservador. Então, o decolonial contribui para o anarquista no sentido de entender que raça é organizadora da nossa sociedade, da civilização, da nossa economia, da política, de tudo, e a libertária contribui no sentido de dizer que o Estado é uma instituição que nasceu para te matar, aprisionar, subordinar, te fazer apenas como produtor de riqueza para os governantes brancos.

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